O Sr. Mendonça, se quisesse ser menos generoso com meu pai, estaria já casado comigo, porque eu o autorizei a tirar-me de casa por justiça.

Norberto, como todas as índoles abjectas, caíra no miserável da sua atonia, sob a fulminante coragem de Carlota. Francisco Salter aproximou-se dela, tomou-lhe a mão, como se estivessem sós, e murmurou:

— A virtude, que Carlota chamou generosidade, continua. Vou a Lisboa, porque sou militar, e transgrido a honra e dever não me apresentando.

Mendonça despediu-se de Carlota Ângela, que chorava, e de Norberto de Meireles, que limpava com o canhão da japona de cotim o suor da brunida testa.

D. Rosália faltara a este conflito, porque, atarefada na cozinha com a liquidação dos legumes vendidos na manhã daquele dia, não dera fé de entrar Mendonça.

Carlota Ângela, apenas sozinha com seu pai, voltou-lhes as costas, e saiu da sala.

Norberto ficara de tal modo aturdido com o desembaraço da filha, que parecia temê-la. Procurou a mulher, e contou-lhe, como ele podia, o sucedido. D. Rosália benzeu-se três vezes, e três vezes levou os braços em arco à altura da cabeça, acção favorita da grossa matrona, quando queria exprimir o supremo espanto.

Animando-se mutuamente, entraram no quarto de Carlota, e gritaram ambos ao mesmo tempo:

— Filha ingrata! nós te amaldiçoamos!

— Para sempre! — disse a solo o Sr. Norberto.

— Para sempre! — repetiu D. Rosália.

— Amaldiçoada! — bradaram em dueto.

— E por que me amaldiçoam? — disse Carlota — que crimes são os meus?

— Ainda perguntas?! — respondeu Norberto, opilando olhos, bochechas, nariz, e tudo o mais susceptível de opilação na sua elástica fisionomia. — Pois não tiveste o atrevimento de me dizer ainda agora que eu não podia fazer nada?

— Disse, sim, senhor; disse, porque há só um meio de me proibir o casamento com a pessoa a quem o pai me deu: é matarem-me.

— Isso diz-se a teu pai, rapariga? — bradou a mãe.

— A verdade diz-se aos pais; mentir-lhes é que é crime. Para que hei-de eu dizer que faço a vontade a meu pai, se não sou capaz de cumprir a minha palavra? Logo que Mendonça voltar de Lisboa, se ele me não procurar, procuro-o eu. Se ele me quisesse com a mira no dote, faria todas as diligências por que me dotassem, ou morreria de paixão por me não dotarem; felizmente, o homem que Deus me destina é a mim que me ama, e não ao dinheiro de meus pais; para ser sua mulher basta-me o coração; pois bem, fique o dinheiro a meu pai, e seja o coração para o homem que não exige de mim outros tesouros.

Norberto olhava Rosália, Rosália olhava Norberto, grotescamente pasmados. Estranha era para eles a linguagem, o entusiasmo, a altivez, as atitudes de Carlota. Queriam contraditá-la com os argumentos triviais de um casamento rico; mas a migalha de bom senso que tinham ambos, bastava a convencê-los da inutilidade de semelhantes razões. Queriam levá-la pelo terror; mas com tanto mimo a tinham deixado emancipar-se desde criança, que não sabiam agora com que gestos, com que palavras, exprimir o agastamento, a admoestação irada, a soberania paternal.

O coração de Rosália era bom, e seria ela a protectora do casamento, se a não tolhessem os prejuízos de classe. A mulher de Norberto cuidava, em boa consciência, que sua filha não podia ser feliz, casando sem o precedente de escrituras de doação, sem a concorrência de doadores bem ricos e bem estúpidos por parte do noivo. Por mais que ela quisesse descobrir no oficial de marinha os encantos que seduziram sua filha, a tapada criatura o que encontrava era motivo para pasmar cada vez mais.

— Um engarilho de bigode como um chibo... — dizia ela a Carlota, depois que Norberto se retirara com medo de ceder à indignação, que o enfurecia — um pechisbeque que não tem terra, nem leira, nem ramo de figueira, ó rapariga, que feitiço te fez aquele patavina? Há por aí tanto rapaz bem asado, com negócio estabelecido, e créditos... se querias casar, por que o não tinhas dito, que já se tinha escolhido a flor dos rapazes do Porto? Está aí o filho do António José da Silva, e do Joaquim José Guimarães, que por entre os dentes deram a entender a teu pai que te queriam, e ainda estão solteiros, não tens mais que falar... Ó mulher! isso foi enguirimanço do demónio! Por que não casas tu com um dos outros?

— Perde o tempo, minha mãe — disse Carlota com firmeza. — Esses homens aborreço-os; o mundo tem para mim um só homem; não vejo, nem quero ver outro: é Francisco de Mendonça, porque sou dele, considero-me já sua mulher, e...

— Tu que dizes, Carlota!? — bradou apavorada D. Rosália. — És já mulher dele? Pois tu... Credo! tu estás aí a dizer blasfémias... Ó desgraçada, pois tu...

— Eu quê! o que está aí a mãe a fazer uns espantos que não sei a que vem? Se me julgou culpada de alguma acção indigna de mim, é mais uma injustiça que faz ao homem que amo. Tenha a segurança de que Mendonça não me humilha; pelo contrário, eleva-me, ama-me bastante, e é bastante virtuoso para não querer que a minha consciência me acuse de alguma fraqueza.

Oh! ninguém sabe compreender, como quem ama, uma nobre alma! Tenho eu, e ele também tem a infelicidade de sermos avaliados por pessoas que adoram o dinheiro sobre todas as cousas, e crêem que fora do dinheiro não há virtudes nem contentamentos. Ó minha mãe, foi uma desgraça darem-me uma educação diferente da que receberam meus pais. Eu vejo as cousas e as pessoas de um modo diverso. Olho para a riqueza como para um obstáculo à minha ventura, e não posso deixar de aborrecê-la...

Bem vejo que minha mãe se admira desta linguagem, creia que não é falta de respeito, nem confiança nas minhas fracas forças; é ânimo que me dá um amor puro, e digno de mim; é uma força de que eu preciso para convencer meus pais de que privar-me de casar com Mendonça é o mesmo que matar-me!

Minha mãe não quer que eu morra, e há-de proteger-me, há-de amolecer o duro coração de meu pai, há-de lembrar-lhe que o consentimento dado não pode ser negado sem desonra para ele, e grandes torturas para mim.