Seja por mim, minha querida mãe, seja boa como tem sido sempre. Tenha dó da sua filha única, da filha que nunca lhe desobedeceu, e, se hoje desobedece, deve ser muito dolorosa a violência que lhe querem fazer...

Carlota Ângela soluçava no seio de D. Rosália, cujos vasos lacrimais se romperam copiosamente.

Eram de bom agouro as lágrimas da enternecida mãe.

As dificuldades, que ela opunha, eram vencidas por novas súplicas de Carlota. D. Rosália acabara por prometer, com o seu silêncio, vencer a resistência do marido.

Norberto saíra entretanto para o Porto, e fora ao paço do bispo prevenir a magistratura eclesiástica contra as diligências de Francisco Salter de Mendonça. Alguém o aconselhou que fizesse entrar sua filha num convento, para obviar ao rapto, visto que, dado o passo da fuga, o mais airoso e honesto era remediar a desonra irreparável sem o casamento.

D. Rosália Sampaio tinha uma irmã freira beneditina, no Porto, senhora muito reformada, muito rezadeira, e havida em conta de predestinada, lá dentro, e de religiosa ilustrada entre as pessoas das suas relações.

Carlota Ângela visitava-a miúdas vezes, e entretinha-se longas horas na grade, e até alguns dias dentro do mosteiro, onde sua tia lhe ensinava muitas devoções mirificamente salutares, com as quais Carlota saía convencida de que, fazendo-as um mês, ganharia indulgências bastantes para remir das penas do purgatório toda a cristandade.

A madre Rufina, sem desagradar ao seu director espiritual, frade carmelita de poucas letras e muitas virtudes, era uma tolerante senhora, a quem Carlota confessara a sua inclinação ao oficial de marinha, resultando-lhe daí ter de rezar, por conselho da tia, mais algumas devoções para que a Virgem lhe inspirasse o melhor destino neste mundo.

Carlota dizia-lhe que o seu apaixonado era pobre. Madre Rufina replicava que pobre era quem não tinha a graça de Deus. Carlota redarguiu que talvez os pais não a dessem a um rapaz sem dote. A beneditina apelava para a vontade do Altíssimo, que fazia tudo pelo melhor. Ora, Carlota Ângela, melhor ou pior avisada, entendia que Deus, na máxima parte dos actos humanos, e nomeadamente nos casamentos, não punha nem dispunha. Isto será menos ortodoxo; mas é necessário impor à responsabilidade do homem, ou do diabo, cousas que por aí há que não parecem de Deus.

Norberto de Meireles foi do paço do bispo ao convento de S. Bento da Ave-Maria, e fez chamar sua cunhada. Contou a desordem em que se achava sua casa, foi eloquente no seu género, desafogou a ira abafada em presença da filha, e terminou dizendo que, o mais tardar no dia seguinte, Carlota havia de entrar no convento, onde estaria até se lhe varrer a mania de casar com o tal Pedro-malas-artes.

A madre Rufina respondeu que na casa do Senhor não se recebia ninguém introduzido à força; que sua sobrinha não estava no caso de aceitar com prazer o recolher-se a um convento, quando o seu coração propendia e ligava a outros amores. E concluiu, aconselhando a seu cunhado prudência e caridade com as inclinações de Carlota, que, se não eram convenientes aos olhos do mundo, também não eram pecadoras aos olhos de Deus.

E, em resposta às impertinentes réplicas de Norberto de Meireles, a digna esposa do Senhor prometeu chamar sua sobrinha, relatar-lhe as mágoas de seu pai, tentar demovê-la do seu propósito, e pedir muito, primeiro, a Maria Santíssima que tocasse o coração de Carlota com a resolução mais conducente ao caminho da virtude neste mundo, que é o da salvação no outro.

Norberto saiu pouco contrito, e notou que sua cunhada gozava uma reputação usurpada. O homem achava aqueles princípios irreconciliáveis com a santidade de que D. Rosália fazia o panegírico, todos os dias. Não obstante, a irritação moderou-se-lhe, na esperança de que, em último refúgio, seu cunhado doutor faria em Lisboa, com o dinheiro, o que a violência não conseguisse cá.

A freira pediu ao capelão do mosteiro que lhe acompanhasse sua sobrinha; e teve com ela o seguinte diálogo, quase textual dos apontamentos de Carlota Ângela, que devemos à confidência de uma sua amiga, de quem logo falaremos:

— Teu pai, menina, esteve aqui ontem, e fez-me pena. Pediu-me que te despersuadisse do amor a...

— Pediu-lhe um impossível, minha tia — interrompeu Carlota.

— Nada é impossível a Deus, minha sobrinha.

— Deus escuta-se na consciência, e a consciência não me condena o coração.

— Mas que te diz ela sobre os deveres de uma filha?

— Diz que tenho satisfeito a todos aqueles em que correspondo aos deveres de pai.

— Não sejas tão absoluta nas tuas respostas, Carlota. A desobediência é um crime.

— E o suicídio, minha tia?

— O suicídio é o maior dos crimes, porque é o desprezo do divino remédio nas dores passageiras desta vida.

— Pois creia que obedecer é morrer; se obedeço, se retiro o meu amor... retirar, meu Deus! eu disse uma loucura! eu não posso retirar o meu amor a Francisco; o mais que posso é mentir; mas essa mentira custa-me a morte... é o suicídio, e mais ainda... é um assassínio, porque eu mato o homem que me é tudo nesta vida...

Carlota rompeu num alto soluçar de lágrimas, que fez chorar a religiosa.

— É escusado — disse esta, após um longo intervalo de silêncio, cortado de suspiros —, é escusado combater a tua paixão. Eu pedi tanto ao Senhor, em comunidade, com algumas santinhas desta casa, que te mudasse a tenção, que já agora não posso duvidar que o Céu abençoa a tua união com esse mancebo. Já não te repreendo, nem dissuado, minha sobrinha. Faremos com tua mãe o que não pudermos fazer com o espírito teimoso de teu pai. Enternece-a com as tuas lágrimas, menina; esperta-lhe a compaixão de que está cheio um coração maternal.

— Já o consegui; minha mãe chorou comigo, e prometeu alcançar de meu pai o consentimento que ele já tinha dado.

— Já tinha dado?! a quem?

— A Francisco Salter, quando me foi pedir.

— E depois? desdisse-se!...

— Quando consentiu, foi para dar tempo a meu tio de nos urdir uma traição. Francisco partiu ontem para Lisboa, chamado a toda a pressa. O plano é talvez demorá-lo lá; mas de que serve a má-fé de meu pai, e as astúcias de meu tio? Cá está o meu coração para vencer tudo. Cedo ou tarde, Francisco voltará, e depois...