e depois, se tanto for necessário, fujo de casa.
— Santo nome de Jesus! não digas tal desatino, que ofendes a Deus. O teu amor, se tal fizesses, deixaria de ser um sentimento honesto, minha sobrinha. Há nódoas que nunca se lavam, e intenções boas que deixam sempre uma face má voltada para os juízos severos do mundo. Já agora, filha, esgota todo o teu cálix de fel para que se não diga que achaste doçura no crime. Eu entrei de vinte e dois anos nesta casa, estou cá há vinte e seis, e ainda me recordo do que era o mundo lá de fora, e o que lá não aprendi ensinaram-me cá pessoas que entraram para aqui sangrando ainda das chagas que receberam lá.
Carlota, eu hoje não te falo a linguagem que me ouviste até aos quatorze anos. Conheço o teu coração, e acompanhei-lhe o desenvolvimento mais de perto que teus pais. Tua mãe não te podia entender, porque tua mãe saiu aos quinze anos da companhia de um tio abade para casar com um homem capaz de lhe abafar a inteligência, se ela a tivesse. Teu pai é um honrado comerciante, tem sabido aumentar os seus haveres com a mira de te deixar muito rica, e não entende nada de coração.
Já vês, minha querida sobrinha, que teus pais ignoram a sua culpa, e não fazem mais do que julgam ser o melhor para a tua felicidade. Não os desgostes enquanto for compatível a obediência com os afectos invencíveis da tua alma. Teu pai quer que te recolhas a este convento. Se vieres, se quiseres vir para a minha companhia, não preciso dizer-te que as tuas acções hão-de ser aferidas pelos deveres de uma menina recolhida nesta casa. Daqui diligenciaremos o teu casamento com esse sujeito; mas as nossas diligências hão-de cooperar todas sobre o ânimo de teu pai, até obtermos o consentimento, esquecendo-nos de que ele procedeu mal, negando o que uma vez tinha concedido. Agora, pensa, Carlota.
— Tenho pensado.
— Queres, ou não queres entrar no convento?
— Quero sim, minha tia; hoje mesmo, se é possível.
— É, que eu tenho ainda licença para tu poderes entrar; mas é preciso que teu pai o saiba.
Carlota Ângela desceu aceleradamente as escadas que conduziam da grade para a portaria. Ia banhada de lágrimas. Ao abrir-se a porta, com o seu tristonho ranger nos gonzos, Carlota estremeceu, e apoiou a face, como esvaída, no cunhal do muro.
— Vem, menina — disse do interior a madre Rufina.
Carlota Ângela pôs o pé no limiar, e exclamou, estendendo os braços para a madre porteira:
— Disse-me agora o coração que era para sempre!... Que é isto que eu sinto, meu Deus!
— Se é Deus que to faz sentir, minha sobrinha, louvemo-lo todas pelo belo presságio que te inspirou.
A porta fechou-se. Carlota, rodeada de freiras, e nos braços de todas, soltou um ai que parecia um grito desentranhado do coração.
VI
Qui amans egens ingressus est princeps in amoris vias,
Superavit œrumnis is suis œrumnas Herculis.
Plauto (Persa)
O demónio da ambição...
A. Herculano (Monge de Cister)
Francisco Salter de Mendonça, logo que chegou a Lisboa, procurou o ministro da Marinha, e encontrou-o, contra as suas presunções, bem encarado e afável.
D. Rodrigo de Sousa Coutinho era um astuto político, sabia conhecer os parvos pavores do intendente geral da polícia, e amava bastante a pasta para contrariar as sugestões do príncipe regente, que tremia dos pedreiros-livres, quando não tremia das conspirações da filha de Carlos IV.
Ainda assim, o ministro, protector afeiçoado de Salter de Mendonça, e particular amigo do frade progenitor, que valia muito com Melos e Ficalhos, houve-se astutamente na recepção do oficial de marinha, mostrando-lhe a ordem do dia, em que era promovido a capitão-tenente, e dando-lhe os emboras da escolha acertada que o príncipe regente fizera dos seus talentos e energia, para, com mais dois oficiais, o enviar ao Brasil a correr com o apresto de uma esquadra, que as prevenções da guerra demandavam.
Este gracioso acolhimento desfez, ao primeiro intuito, as suspeitas de Mendonça. A intriga era incompatível com a mercê do posto, e a honraria do encargo. A reflexão, porém, sobreveio ao juízo da primeira impressão, e Salter, recordando o que se passara no Candal, creu de novo que o bacharel promovera o seu desterro, simulado com a máscara do favor.
A nova de ter sido adjunto ao intendente Manique o tio de Carlota Ângela revalidou a desconfiança.
Mendonça apresentou-se ao ministro, e pediu licença para tornar ao Porto, onde o chamavam compromissos do coração em que a sua palavra de honra se achava empenhada. D. Rodrigo objectou com a necessidade urgente da partida no prazo fixo de quatro dias; discorreu profusamente acerca da primazia dos deveres de português em confronto com os particulares do coração; e encareceu o azedume com que sua alteza, o príncipe regente, veria posporem-se negócios do Estado às alianças amorosas de um súbdito que lhe merecera tão relevante prova de real confiança.
Instava, por outra parte, o frade beneditino, e a parentela ilustre do frade, vaticinando ao capitão-tenente um almirantado em poucos anos de serviço.
Para estes profetas de glórias ensurdecera Mendonça.
O coração acusava-o de ingrato e vil, se a cabeça se deixava instantaneamente desvairar com as vanglórias da fama. A imagem chorosa de Carlota Ângela aparecia-lhe como um estímulo de honra, se o fraco espírito humano inclinava ouvidos aos embaimentos da consideração, do renome, e dos altos destinos a que o conduzia uma boa estrela.
Mendonça, quando as felicitações de amigos e invejosos pareciam já galardoá-lo das bizarrias previstas, meditava rejeitar não só o novo posto e a comissão mais valiosa que ele, mas também a patente que já tinha. O tempo urgia, e os aprestos para a saída aceleravam-se com extraordinária diligência. O capitão da real brigada deliberou pedir a sua baixa, ou, caso lha negassem, dar parte de doente. Neste propósito estava, quando recebeu uma carta de Carlota Ângela, datada no convento de S. Bento da Ave-Maria.
Carlota contava-lhe miudamente os sucessos que a levaram ao convento; o patrocínio que encontrara em sua tia, as esperanças que esta lhe dava de docilizar a pertinácia do pai; o contentamento que ela sentia em esperar no remanso daquele santo asilo o esposo querido; a liberdade que estava gozando ali de pensar no seu anjo, ali, onde ninguém tentava desvanecer-lho do coração; em resumo, Carlota dizia-lhe que estava prevenida contra todas as borrascas, assegurando-o de que só sairia do mosteiro para ser esposa do predilecto da sua alma. Não ajuntaremos ao conciso extracto da longa carta as meiguices de amorosa unção, os enternecidos delíquios da saudade, os azedumes e dulcidão desse agro-doce espinho, que rasga o seio ao mesmo tempo que o bálsamo da esperança alivia a dor, cicatrizando a chaga. Essa carta era o que devia ser uma carta de Carlota Ângela: a alma inteira, no que a alma numa virgem tem de comunicativo ao coração estranho, se estranho pode dizer-se o coração amigo que se sente e escuta dentro do nosso.
Francisco Salter era formado deste barro humano, contra o qual se tem vociferado e estampado muita sátira.
A mais suave maledicência, querendo poupar a natureza humana às querelas e libelos da filosofia rixosa, diz que o homem é um mistério.
A teologia cristã, para desencarregar o supremo artífice do desaire da sua obra, diz que o homem é um ente degenerado da sua primitiva puridade.
Em boa paz com teólogos e filósofos, a mim se me afigura que o homem é um composto de grandeza e pequenez, uma dualidade de gigante e pigmeu.
Mendonça tinha uma única mácula na sua excelente natureza: era a imperfeição, era a falha do grande brilhante, que o leitor, de ânimo frio e vista clara, vai ver comigo.
A carta de Carlota Ângela tranquilizou-o; não disse tudo — alegrou-o, deu-lhe um ar radioso de confiança e certeza na dedicação, que momentos antes lhe incutia o receio da mudança.
O homem é assim.
Parece que o amor sem a desconfiança, a esperança sem a dúvida, lhe dá um sossego de espírito que não quadra à sua natureza irrequieta.
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