O pungir de constante espinho é-lhe um necessário estímulo de vida. Se ele sai do coração, é forçoso que fira o órgão de outras paixões. Se o amor prevalece à ambição de glória ou de riquezas, satisfaça-se o amor, e a outra paixão resultará com toda a impetuosidade do arco retesado... Não se tirem já contra Francisco Salter conclusões que o vago daquelas premissas não autoriza.

A carta não baixou a temperatura, mas mitigou o rescaldo do amor, a ânsia da incerteza, afrontamento das conjecturas que ele formava acerca do destino que o irritado Norberto daria a Carlota, depois da arrojada ameaça do Candal.

Se a levariam fora do reino:

Se a casariam violentamente com outro:

Se a encerrariam num convento, incomunicável:

Se a despersuadiriam com razões das que vencem o vulgar das mulheres, quando o amante as não anima com a sua presença:

Se Carlota seria uma mulher vulgar, susceptível de sucumbir às contrariedades.

Tudo isto eram hipóteses atormentadoras; mas a carta respondia a todas. Carlota estava a salvo da perseguição; sozinha com o seu amor, que ninguém lhe impugnava; nutrindo-o com saudades na solidão do claustro. Este convencimento aplacou a vertigem de Mendonça.

A ideia de pedir a baixa pareceu-lhe desnecessária. O espaçar-se o casamento para mais tarde afigurou-se-lhe racional e necessário aos seus deveres de militar, e ao cumprimento dos encargos com que o príncipe regente o honorificava.

E, depois, dizia nele o ente pensante:

«Não será bem decoroso para mim voltar do Brasil com uma posição tão acrescida em honras, que ninguém possa notar desigualdade entre mim e a filha do opulento comerciante?

«Como homem brioso, não deverei eu querer que a própria Carlota me considere um homem disputado por herdeiras iguais, ou ainda superiores a ela?

«Os pais de Carlota, quando eu voltar habilitado para entrar no valimento dos mais poderosos, e igualar-me a eles, não terão pejo, vendo-me entrar em sua casa a castigá-los com pedir-lhes, segunda vez, a filha, sem dote?»

Assim falava o orgulho do espírito; o coração, porém, patrocinando o anjo puro, a quem semelhantes conjecturas injuriavam, tinha arrebatamentos de tão sentida queixa, ou clamava com tamanha ternura à consciência incorrupta do mancebo, que, mais de uma vez, o amor saiu vitorioso, e o projecto de pedir a baixa readquiriu novos estímulos.

E os sonhos de glória?

E os respeitos do mundo, que não eram, como hoje, restritos ao dinheiro?

E o cortar uma carreira, quando a aurora do seu brilhante dia raiava tão sem nuvens?

E uma longa vida a viver só das comoções de um amor satisfeito?

E o emparelhar com os mais nobres, quando se tem um nascimento obscuro, ou se não pode, sem desdouro, proferir o nome do pai, que enverga, não a farda do general, mas o hábito dos monges negros?

Replicava assim o orgulho reagente; e o amor suplicante exorava de novo; a imagem melancólica de Carlota Ângela espelhava-se no coração do moço; ressurgia ovante em toda a sua nobreza e isenção a amorosa alma, e a tenção de não partir reacendia-se mais cálida e inabalável.

Assim, pois, chegou Mendonça a submeter o seu requerimento ao despacho do ministro.

Maior seria o pasmo de D. Rodrigo, se não julgasse o capitão da real brigada de marinha comprometido na Maçonaria, onde se pactuara que a desobediência implicaria pena de morte, a ferro ou a veneno como a de José Anastácio de Figueiredo, em Mafra, à sombra das telhas reais.

O ministro chamou o requerente a uma audiência secreta, e disse-lhe que não só lhe negava a baixa, mas até lhe exigia o cumprimento das ordens régias; que seria mal visto de sua alteza o súbdito que tão mal correspondesse ao régio conceito: que seria degenerado português o que, no solene momento de pôr peito em defesa da pátria e à remuneração de patrióticos feitos, se furtasse aos trabalhos e às glórias: que seria irrisório não justificar o requerimento de baixa com mais motivos para tamanho desconcerto que um pueril amor, que não devia passar de um incidente de terceira ordem na vida de um homem inteligente, e fadado para estrondosos destinos: que, finalmente, o valimento se converteria em castigo, se ele requerente persistisse na disparatada baixa, cuja concessão lhe granjearia o riso de uns, o ódio de outros, suspeitas perigosas de muitos, e, mais que tudo, a malquerença de sua alteza, que tencionava nomeá-lo major da armada, logo que servisse três meses no Brasil.

O remate da alocução era a douradura da pílula. Major da armada! a aspiração mais vantajosa de tantos, que a não realizavam na velhice! Voltar, depois de alguns meses, a Portugal, major da armada, condecorado, enobrecido, chamado aos conselhos do soberano, e talvez ao ministério!

Mas deixar Carlota no convento, a carinhosa Carlota, amada dois anos, amada para sempre, votada aos sacrifícios, aos desprezos, às injúrias, a tudo, para lhe merecer a ele a renúncia de glórias que retardavam um enlace tão suspirado!

Mendonça, na véspera da saída para o Rio de Janeiro, escreveu esta carta:

«Vê, minha Carlota, que eu choro. A aflição não me deixa outro desafogo. Quando receberes esta carta, separam-nos centenares de léguas. Eu parto amanhã para o Brasil, obrigado pela minha condição de servo agaloado. Deram-me o comando de um navio, e mandam-me cumprir serviços de que eu cobraria esperanças para grandes honras, se a minha glória única não fosses tu, esposa da minha alma. Quis dar a minha baixa, requeri, instei, negaram-ma, e impuseram-me as leis militares. Quis dizer-te um adeus por algum tempo; não me consentiram delongas, porque a corveta Amazona esperava-me quase aprestada para se fazer à vela.

«Mas eu não parto, Carlota. Contigo fico, anjo. O meu coração aí fica, aí está pulsando no teu. As lágrimas de saudade que choras, choram-nas também os meus olhos. Entre nós, nesta longa distância que nos separa, prende-nos a mesma cadeia de dores, de aflições, de terríveis pressentimentos. Quando te doer no coração o presságio da minha morte, senti-lo-ei também eu lá, e chamarei por ti no silêncio da minha alma, neste grito surdo da saudade, que é um despedaçar de todos os ligamentos da vida.

«Por que choramos nós, Carlota? Invoquemos a razão desvairada pela angústia; supliquemos a essa filha de Deus, senão remédio, ao menos conforto às nossas dores. Deveremos nós chorar como choram amantes infelizes? Eu creio que não, minha cara esposa. Se hoje nos dissessem: «a vossa união há-de realizar-se passados seis meses, ou ainda um ano», teríamos justo motivo para nos rebelarmos contra o destino, contra a Providência que nos aproximou tão dignos um do outro?

«Não, Carlota, porque o nosso amor não está ameaçado de alguma sinistra casualidade que o aniquile ou arrefeça. As distâncias são impossíveis entre duas almas identificadas. Para ti no claustro, para mim na amplidão dos mares haverá sempre o mesmo santuário de fervente amor, a mesma acção de graças a Deus, que não quer o infortúnio dos que o confessam e chamam nas suas agonias. As nossas lágrimas há-de a esperança enxugá-las. A esperança nos acordará dos sonhos tristes. A saudade, que desalenta e cansa, irá ao futuro pedir sorrisos às risonhas imagens da nossa ventura de esposos. Oh! nós não temos razão para chorar uma separação de alguns meses, quando nos separamos tão confiados, como se acabássemos de receber a bênção no altar, como se, no derradeiro abraço, sentíssemos entre nossas faces o rosto de um filho.

«Que ridente imagem esta, ó Carlota! que estranho palpitar de coração eu sinto agora! que delícias nos aguardam para o dia imorredouro da nossa felicidade!

«Ânimo, minha adorada esposa! Eu careço de imaginar que tens coração para aceitar, sem fraqueza, esta dor. Preciso alentar-me da tua coragem, para que o auxílio da razão não esmoreça. Animei-te; mas as lágrimas não me deixam escrever, nem a ti te deixarão entender estas palavras.