Agora se me cerra em indizível tortura o coração. Largo a pena, desafogo em gemidos este aperto de alma, semelhante ao impossível de comparar-se. Não me venço. Já creio que te perdi. Acuso-me de ingrato porque não deserto, e calco as leis, e fujo para ti, e te roubo a todo o mundo, para mendigar contigo uma esmola em país estrangeiro. Eu sou vil, sou indigno de ti, e rasgarei esta carta, ou ler-ta-ei de joelhos, para que tu me perdoes tamanho crime.

«Que digo eu, meu Deus! que penso eu, e que farei da minha vida! Impossível, Carlota, impossível deixar de seguir o meu destino! Agora mesmo sou chamado à secretaria para receber as últimas ordens. Este cálix irremediável há-de ser tragado, ou a desonra, a perseguição, e o perder-te... Que horrível palavra!

«Um juramento, Carlota! Faz-me um juramento, ajoelhada diante de um crucifixo. Eu não o tenho aqui, mas invoco o testemunho de Deus, porque o meu coração, quando tu proferires estas palavras, há-de ouvir-tas, e recolhê-las. Jura que só sairás do claustro para ser minha esposa; e, se a morte me colher longe de ti, acabarás aí teus dias, e nenhum ente sobre a Terra roubará à minha alma a melhor parte que lhe fica no mundo, esperando que Deus a chame para a acolher ao infinito amor da bem-aventurança.

«Juraste, Carlota? Agora crê que o meu espírito te pediria contas desse juramento, se a perfídia denegrisse a tua alma imaculada.

«Pérfida!... tu!... Perdoa-me, anjo do Céu, pelas lágrimas que choro, pelas que tu choras, mais puras, mais angustiosas que as minhas!

«Adeus.....................»

VII

Fiel é Deus, que não sofre termos mais peso do que aquele com que podem os nossos ombros. Dele se devem esperar os verdadeiros alívios, e nesta fé se acabam os quebrantos.

Fr. António das Chagas (Cartas)

Carlota Ângela proferira o juramento, ajoelhada diante de uma cruz; foram, porém, daí levantá-la os braços de D. Rufina, que, acudindo ao soluçar dos gemidos, a encontrara esvaída.

Depois que a lançou à cama, a religiosa leu a carta, e disse a uma noviça que vinha entrando:

— Quando assim se amam duas criaturas, a vontade de Deus está nesse amor: tudo que os homens fizerem contra ele é um sacrilégio, é um atentado contra os desígnios do Altíssimo.

A noviça, depositária dos segredos de Carlota, leu também a carta, e foi sentar-se à cabeceira do leito, encostando ao seio a face desmaiada da sua amiga.

Os sentidos de Carlota restauraram-se espavoridos. Tremia toda, e fitava com espasmo e assombro o rosto lagrimoso de Doroteia.

— Chora, chora, Carlotinha — disse a noviça, dando-lhe o exemplo, e acariciando-a com beijos.

— Se eu pudesse chorar... — balbuciou Carlota, encolhendo-se em tremuras de frio entre os braços de Doroteia.

— E, se ele morresse, não sofrerias mais, menina?!

Carlota fitou-a espantada, e disse com voz rouca pela sufocação:

— Se ele morresse... quem?... pois sabes...

— Sei; li a carta, e tua tia também a leu, e chorou. Eu não acho razão bastante para sucumbires assim.

— Eu não sucumbo... se sucumbisse, estava morta... Ainda vivo; mas, Doroteia, eu creio que morro, e morro brevemente...

— Arrepende-te, alma de pouca fé! — disse a tia, mostrando a sua nobre fronte de cabelos brancos, coberta com o majestoso véu negro, por entre os cortinados do leito. — Que falas aí em morrer, criança! Vida, muita vida, e muita confiança em Deus, e esperança em dias melhores, é o que te ensina esta carta, mulher sem ânimo. Vamos lê-la de novo: sou eu que a leio, e veremos se o coração de uma velha sabe melhor que a moça entender o coração de um mancebo.

D. Rufina, sorrindo com fagueira graça, abriu a carta, sentou-se na cama de Carlota, e acompanhou a leitura com suas glosas, não deixando sem elas a menor frase esperançosa.

A respiração profunda de Carlota, o convulsivo soluçar, o gemido indomável que lhe fugia em agudíssimos ais, interromperam, muitas vezes, a leitora. Era então que as consoladoras anotações de Rufina, e o assentimento da noviça, redobravam de persuasiva eloquência, capaz de maravilhar as freiras, que supuseram sempre estranha à linguagem das paixões a austera religiosa.

Terminada a leitura, soror Rufina, descontente com o insensível resultado das suas consolações, apelou para o influxo sobre-humano da religião.

— Venham cá ambas — disse ela —, vamos todas três pedir de joelhos ao Senhor, que leve e traga a porto de salvamento o nosso Francisco.

— Sim, sim! — exclamou Carlota Ângela, saltando do leito, e seguindo-a com passos vacilantes.

Ajoelharam, e oraram afervoradamente. Seria difícil estremar entre as três qual era delas a que pedia a Deus o salvamento do amante: tal era a devoção de todas.

— Agora respiremos! — disse, terminada a reza, a freira. — Hás-de vê-lo, hás-de ser sua esposa, minha Carlota.

Nas grandes agonias, qualquer esperança exalta a crença em agouros, em presságios, em superstições até. Carlota, pensando que sua tia recebera a suprema graça da revelação, exclamou com alegria e transporte:

— Que foi, minha tia? Disse-lho Deus?

— Deus, filha, não fala a criaturas tão pecadoras e indignas como tua tia; mas consente que se possa contar com os efeitos da sua divina misericórdia. Tudo o que se pede ao Senhor, com humildade e justiça, consegue-se.