E, assim, te repito, Carlota, que Francisco Salter voltará, será teu marido, e tereis larga remuneração dos sofrimentos que oferecerdes a Deus em desconto dos contentamentos que sobejam aos felizes deste mundo.

Estas palavras soaram tocantes e solenes como o profetizar da que a comunidade reverenciava assistida de graça superior. Carlota sentia alargar-se a golilha de ferro que lhe entalava na garganta o respiro e a fala. As lágrimas, represadas no coração, rebentaram em torrentes: e o sangue, que se retivera suspenso, circulava de novo, rosando-lhe a lividez cadavérica do rosto.

Estava desoprimida; e fora a esposa de Jesus misericordioso que lhe insuflara alentos. Fora uma freira das que desafiavam o riso dos incrédulos com suas devoções, e austeras impertinências; fora uma mulher, das que morreram para o mundo ou o mundo matara, das que se acolheram a Deus ou Deus tirara do seu inferno em vida, fora essa a que tirara da cruz, onde expirara o amantíssimo redentor dos homens, remédio de vida, e esperança para a chaga de um coração de dezassete anos, ferido de desespero e morte.

Assim, pois, na cela da rígida religiosa se desafogavam e consolavam afectos dos que, fora dali, no mundo tolerante e vicioso, são julgados rebelião contra a vontade paternal, escândalo para filhas submissas, e pecadora cegueira do coração humano!

Quão inventiva não é a caridade! quão largas bracejam as vergônteas desse tronco evangélico, regado pelas lágrimas daquela a quem Jesus perdoara por ter amado muito!

A desvelada noviça não deixava sozinha Carlota, um instante. Ela e Rufina revezavam-se ao pé da pensativa menina, que parecia querer fugir-lhes, já não para se carpir, mas para orar; que, na oração sentia Carlota outro espírito em si, o murmúrio de outros lábios suplicantes, a fervorosa crença de Mendonça inflamar-lhe a fé.

A serenidade viera com a confiança no futuro: do sobressalto, da aflição, pouco e pouco sossegada, ficara a melancolia suave da paciência, essa que só Deus concede aos que à sua misericórdia recorreram na adversidade, e em sua vontade se louvaram.

D. Rosália visitava a filha miúdas vezes, o pai raras, e de breve demora, porque o silêncio de Carlota, que ele julgava desafeição, desanimava-o de a ver, e incomodava-o a sós com ela.

Dizia a mãe, nos primeiros tempos, que não havia tirar-lhe o sim para o casamento; mas que ainda era cedo para descorçoar. Dois meses depois, mostrou-se mais dócil a pertinácia, e já ele dizia que, na volta de Mendonça, tudo se faria pelo melhor: é que o ajudante do intendente geral da polícia, por ocasião de lhe pedir mais seis mil cruzados, explicara o saque, dizendo que esta quantia se fazia mister para criar novos embaraços ao regresso de Salter, logo que a comissão, a que fora, estivesse cumprida.

Decorreram quatro meses. Os navios vindos do Rio, já com a nova da chegada do Amazonas, e cartas dos tripulantes, receberam a bordo uma visita da polícia, e entregaram a correspondência. Entre as cartas havia uma de grande volume, subscritada a D. Carlota Ângela de Meireles, residente no mosteiro de S. Bento da Ave-Maria, no Porto.

O bacharel Sampaio deslacrou esta carta, leu oito folhas de papel, e lançou-as ao braseiro, aquecendo e esfregando as mãos à lavareda. O malvado queimara ali o traslado das mais tristes imagens, o desafogo da mais dorida saudade que ainda apertou coração de homem! O ímpio não se amiserara de tantos sinais de lágrimas em que a tinta se apagara! Que raptos de alegria, e suspiradas consolações aquela carta, que voejava no ar em faúlas, levaria a Carlota! Que esperanças tão belas o perverso queimou com a chama daquele papel!

Entretanto, Carlota, que contara os dias, e calculara, mil vezes, com Doroteia, o primeiro em que devia receber novas de Mendonça, mandava todos os dias de estafeta uma servente para a porta do correio, esperando a lista, ou interrogando o carteiro. Sempre, em vão! A antiga dor renascia em cada correio; redobrava a aflição a cada esperança frustrada.

Conspiravam em consolá-la Rufina e a noviça, esta com razões mais carinhosas que persuasivas, aquela confirmando o vaticínio da felicidade prometida. Os alívios da primeira eram sempre profícuos e desejados; os da segunda faziam-na prorromper em gemidos, que também eram desabafo.

Decorreram três meses de aflitivas esperanças, sempre enganadoras para todas. Nem uma carta, nem duas linhas escritas no leito da morte!

Carlota Ângela tremia de pronunciar uma desconfiança acerba que lhe trazia o coração em agonias. Soror Rufina rogava incessantemente à bondade divina que afastasse da sobrinha o temor que a sobressaltava a ela. Doroteia segredava à freira os seus receios, e esta pedia-lhe muito encarecidamente que não proferisse uma palavra sobre tal desconfiança.

Acontecia, porém, que todas suspeitavam o mesmo; a morte de Francisco Salter.

Carlota receava que as suas amigas julgassem possível ter ele morrido; assentimento tal seria para ela uma espécie de evidência, porque tão pouco basta para certificar suspeitas entranhadas num espírito que a desgraça fez supersticioso. As outras calavam o pressentimento funesto, cuidando que a matariam.

Neste conflito, correu no Porto a notícia da morte de Francisco Salter de Mendonça. Ninguém sabia dizer por onde a notícia viera; os amigos, porém, do honesto e talentoso oficial de marinha contavam-se que ele morrera no Rio de Janeiro, quando a glória o vinha buscar por uma carreira esperançosa de grandes destinos.

A notícia chegou ao convento. Souberam-na todas, excepto Carlota Ângela.

Rufina caiu doente, e Doroteia denunciava-se à infeliz menina, evitando-a, quando mais ansiosa de compaixão e carinho se sentia impelida para ela.

As freiras olhavam a pobrezinha com mais piedade que nunca; animavam-na como se quisessem ter parte em seu coração para a salvarem pela amizade, quando houvessem de revelar-lhe a mortal notícia. Carlota estranhava os melancólicos olhares, os beijos e carícias de todas, a condolência terna com que, as mais afastadas da sua convivência, a vinham espairecer ao seu quarto.

Norberto de Meireles procurara sua filha, nesses dias em que a notícia vogava. Soror Rufina estava de cama; recebera primeiro o recado do pai de Carlota. Esta preparava-se para ir à grade, quando a ansiada tia lhe disse:

— Vou-te aconselhar a desobediência, minha sobrinha, e Deus me perdoe por sua imensa bondade. Não vás à grade. Eu tomo sobre mim a responsabilidade de mais um pecado.

E, voltando-se para a criada, mandou dizer a Norberto que sua filha não podia falar-lhe; mas esperasse alguns minutos, que alguém iria em lugar dela.

— E por que é isso, minha tia?! — perguntou a sobrinha admirada.

— Porque sim, minha filha. Receio que ele te venha falar... — continuou balbuciante — em cousas desagradáveis.

E, sentando-se no leito, a febricitante religiosa, ajudada de Carlota, vestiu-se, e foi à grade encostada a Doroteia.

— Então a pequena que tem? — perguntou Norberto.

— Está doente.

— Já lhe chegou a notícia! Que tenha paciência. Deus tudo faz pelo melhor...

— Também digo o mesmo — atalhou Rufina. — E o mano agora que lhe quer? Consolá-la?

— Quero dizer-lhe que é preciso mudar de rumo, e tirar o sentido do homem que morreu.

— Isso há-de dizer-se-lhe por outras palavras menos terminantes.

— Isso lá é bom prà mana; eu cá digo as cousas como sei.

— Pois sim; mas consinta que eu a disponha para o golpe, e depois tudo se lhe dirá com prudência e caridade.

— Pois ela ainda não sabe que morreu o homem?!

— Não, mano; se a notícia fosse alegre, tinha-se-lhe dito; mas eu não acho necessário dar-se-lhe uma nova que a pode matar.

— Qual matar, nem meio matar! — replicou o brutal arrozeiro, trejeitando com os beiços carnudos um gesto de incredulidade. — Pobre de quem morre, diz o ditado.