Ainda é de bom tempo, cunhada. Isto de raparigas namoradas, são como as viúvas: choramigam oito dias, e ficam frescas como se não fosse nada com elas.

— Está enganado. Pergunte a minha irmã, que tem coração de esposa e de mãe, se isso assim é. Estou bem convencida que ela fará um diverso juízo do sofrimento de Carlota. Enfim, mano, eu ergui-me da cama para vir aqui, e estou a tremer de frio e febre. Conceda que eu me retire, pedindo-lhe pelo divino amor de Deus que deixe ao meu cuidado revelar a notícia à desgraçada Carlota. O mais dificultoso é curar depois a ferida, se o golpe não for de morte: confio em Maria Santíssima que não será.

— Pois então adeus — tornou Norberto, puxando para as orelhas a gola do capote de quartos. — Arranje cá isso do melhor modo, e diga-lhe que venha cá pra fora, a ver se ela se tenta com algum de três noivos, o qual melhor, que eu trago na mira. Se eu a quisesse casar com um morgado da província, fidalgo, e senhor de casa com capela, já me falaram para isso; mas, a falar a verdade, o que eu quero é homem de negócio, ou filho de negociante com dote à vista; não faço bem, cunhada?

— O mano lá sabe o que lhe convém; mas nunca faça cálculos sem contar com a vontade de Carlota. Parece-me que lhe posso asseverar que ela não sairá mais deste convento. Perdeu um esposo; mas o esposo verdadeiro, o esposo das almas angustiadas está cá dentro; é Jesus Cristo, o único bem que há-de entrar no coração despedaçado de Carlota, e curá-lo com a esperança de encontrar na bem-aventurança o primeiro que perdeu.

— Pois Carlota há-de ser freira?! — interrompeu com impetuosa grita Norberto, derrubando a gola do capote, que era de mais na cara afogueada pela ingrata nova.

— O mano faz um espanto — redarguiu mansamente Rufina — como se eu lhe dissesse que sua filha havia de praticar um crime!...

— É que eu não quero!... — redarguiu ele, batendo um troante murro na banqueta.

— O mano não quer; mas a sua vontade agora vai encontrar outra vontade sem comparação mais poderosa: é a vontade omnipotente do Senhor, que move os mundos e os corações. Não me disse, há pouco, que Deus tudo fazia pelo melhor? Pois bem, pode ser que a divina vontade quisesse para as suas eternas núpcias a que havia de ser esposa de outro, que Deus chamou a si.

— Veremos como isso há-de ser. Em todo o caso eu quero minha filha cá para fora. Não a criei para freira, tenho muito que lhe deixar.

— Tudo o que o mano tem pode varrê-lo um ligeiro sopro da desgraça. Modere a sua soberba, que não o castigue Deus, que abate os soberbos, e exalta os humildes. E, demais, a casa do Senhor não se abre só para as meninas pobres. Eu deixei um grande património quando aqui entrei, e vim achar uma riqueza incomparavelmente maior do que a que deixei: foi o esquecimento do mundo, e o amor sempre crescente de outro melhor. Ora, bem pode ser que sua filha se deixe namorar dos anjos, e rompa com os amores transitórios desta vida. Em suma, o que eu lhe digo, meu cunhado, é que minha sobrinha só pode ser salva pela religião; e eu, se Deus me achar digna, hei-de estender-lhe a mão ao abismo onde a lançaram, e encaminhá-la por onde eu vir que ela é menos infeliz. Não posso mais, estou fatigada e angustiada, adeus.

Norberto de Meireles enfiou de novo a cara oleosa na pelúcia da gola, sobraçou a enorme bengala encastoada de prata, e saiu do átrio do mosteiro com as ventas fumegantes.

VIII

Didone:

... No mai die fiamma impura

Feci l’are fumar per vostro scherno;

Dunque perché congiura

Tutto il ciel contra me, tutto l’inferno?

Osmida:

Ah! pensa a te non irritar gli Dei...

Didone:

Che Dei? Son nomi vani,

Son chimere sognatte, ó ingiusti son.

Metastasio (Didone)

Norberto de Meireles comunicou, imediatamente, ao cunhado o acontecido com a religiosa beneditina, pedindo-lhe conselho para evitar que a filha se fizesse freira.

O bacharel Sampaio chamou a capítulo os seus vastos expedientes de perfídia, e conglobou-os num, do qual ousou afiançar ao cunhado um êxito feliz.

Chamou pessoa idónea para executá-lo, e de Lisboa veio ao Porto um indivíduo encarregado da seguinte missão:

Entrou, um dia, no pátio do mosteiro de S. Bento esse homem, e perguntou na portaria, se lhe seria possível fazer chegar às mãos da Sr.ª D. Carlota Ângela um bilhetinho de sua mãe.

A porteira respondeu afirmativamente, como era de esperar, recebeu o bilhete, e entregou-o a Carlota, que saía do coro, onde costumava passar as manhãs em oração.

Era este o conteúdo do bilhete:

Uma pessoa quer falar à Sr.ª D. Carlota acerca de Francisco Salter de Mendonça; mas deseja estar só com ela em uma grade. A pessoa espera resposta.

Carlota alvoroçada correu ao locutório, e exclamou:

— Estou aqui.

O enviado do bacharel aproximou-se, e disse:

— Sou eu que a procuro, minha senhora; mas na esperança de ser demorada a nossa prática, pedia o favor de me falar numa grade, porque este lugar é impróprio para se tratarem cousas de tamanho segredo.

Carlota olhou em redor de si, viu uma criada com uma chave, e disse com precipitação:

— Empresta-me a grade por um bocadinho? empresta, por quem é?

— Sim, minha senhora — disse a criada.

Carlota indicou ao homem de Lisboa a grade, e correu a encontrá-lo.

Não tinha ainda ele terminado as formalidades da cortesia, disse Carlota impaciente:

— Ele já veio? Está em Lisboa?

Estas perguntas eram feitas a tremer. Carlota, não podendo com a aflitiva dúvida da resposta, apressou-se a interrogá-lo assim, cuidando que a certeza com que perguntava por Mendonça vivo a desoprimia da suspeita de que ele era morto.

O homem não estava preparado para perguntas tão expeditas. Ficou perplexo, e esta indecisão deu azo a novas perguntas:

— Traz-me cartas dele? dê-mas...

— Não trago cartas, minha senhora.

— Não?! — atalhou ela com veemência e sobressalto.

— Não, Sr.ª D. Carlota. Francisco Salter não lhe escreveria, ainda que pudesse...

— Como?! não entendo!...