Não escreveria... porquê?
— Se a menina serenar um pouco, tomarei a liberdade de historiar-lhe vagarosamente a vida do homem que lhe mereceu um grande amor, digno, permita-me dizer-lho, de ser melhor aplicado.
— Isso é uma calúnia! isso é mentira! — exclamou Carlota, sem pesar a gravidade das palavras que ouvira, e das que proferira com exaltada acrimónia.
— Eu desculpo-a das injúrias que me dirige, porque avalio a surpresa dolorosa, que lhe fazem tão horríveis novas. Queira escutar-me.
Francisco Salter saiu do Porto amando-a, como se ama aos vinte e quatro anos, com esse amor imprevidente, superficial, e arriscado às variantes do coração logo que as tempestades de outras paixões se levantam, sopradas por um casual encontro com outra mulher. Era um rapaz no começo de uma bela carreira, com espíritos ambiciosos, sem bens de fortuna, e descontente da sua sorte... O desengano devia vir, logo que os olhos da pessoa, que ele amava, deixassem de influenciá-lo. Chegou a Lisboa, onde tinha valiosos amigos e parentes, e onde fora chamado para receber uma honrosa comissão para o Brasil, com aumento na sua carreira, e promessas seguras de grandes vantagens.
Francisco Salter de Mendonça rejeitaria a glória, se o amor fosse de mais rija têmpera; renunciaria um almirantado, se o coração de Carlota Ângela saciasse nele a louvável ambição de se fazer grande por merecimento próprio. Obedeceu ao orgulho, e partiu para o Brasil, como a menina sabe. Escreveu-lhe, talvez, uma carta muito saudosa, muito lamuriante, muito esperançosa; mas... partiu.
No Brasil, foi recebido como era de esperar. Encontrei-o na melhor sociedade, posto que a melhor sociedade de lá só se faça valiosa pelo dinheiro. As ricas herdeiras olhavam-no como um rapaz distinto, capitão da real brigada, bem-falante, gentil, bravo, soberbo de si, e colocaram-no na posição de escolher.
Vejo que V. S.ª está ansiada. Se a continuação da minha visita a molesta, peço licença, e retiro-me.
— Não... não... queira dizer — balbuciou Carlota, tirando com violência a respiração do seio convulsivo.
— Os fumos da vaidade e os da ambição — prosseguiu o porta-voz do bacharel — enevoaram aos olhos de Mendonça a imagem de Carlota Ângela. Eu, que fora nos primeiros dias seu confidente, sabia que a menina existia neste convento; recordei-lhe com pesar o indigno perjúrio, e ele respondia-me que a ausência era o bálsamo maravilhoso das chagas que o amor fazia. Confesso que me angustiou esta baixa condição de alma! e muito principalmente depois que vi algumas cartas de V. S.ª, escritas enquanto ele fazia a viagem.
Passados meses, dois ou três, se tanto, Mendonça dá parte aos seus amigos de que vai tomar estado com a filha única de um opulento negociante, dotada com centenares de contos.
— E casou? — exclama Carlota, lançando com vertiginoso ímpeto as mãos às grades.
— Casou — respondeu o homem, friamente.
Carlota soltou um grito, que não tem outro comparável na expressão da angústia humana. Era o ruído agudo do estalar de todos os tecidos do coração, do rasgarem-se todos os vasos de sangue, do embate dos pulmões lacerados contra as paredes do peito. E, depois, os dedos recurvos nos ferros da grade, relaxaram-se, hirtos como os de um cadáver, e o corpo resvalou da cadeira para o chão com estrondoso baque.
O homem horrorizou-se um instante da sua obra, e recuou até à porta para retirar-se; mas a sua missão não estava ainda cumprida. Relampagueou-lhe uma ideia lúcida. Desceu à portaria, e disse que fosse alguém à grade, onde se achava desmaiada a Sr.ª D. Carlota.
A este tempo já a madre porteira, alarmada pelo estrondo da queda, entrava pressurosa na grade, e vendo Carlota no chão, chamou-a a altos gritos. Houve grande rumor no convento, e entre as muitas pessoas que desceram à portaria, vinham D. Rufina e a noviça.
O homem de Lisboa permanecia imperturbável na grade, esperando que o interrogassem, já depois que Carlota fora transportada, com frouxos sinais de vida, ao seu quarto, acompanhada de um médico, que a fortuna trouxera nesse conflito.
— Alguma das senhoras é a tia da Sr.ª D. Carlota Ângela? — perguntou o homem.
— Sou eu — respondeu a pávida religiosa.
— Concede-me alguns minutos sem testemunhas?
As outras senhoras deixaram só Rufina; o delegado do bacharel prosseguiu:
— Essa menina desfaleceu, quando eu lhe noticiei o casamento de Francisco Salter de Mendonça.
— O casamento?!
— Sim, minha senhora.
— O que geralmente se diz é que morreu.
— Casou, e morreu, dias depois.
— Oh meu Deus! — clamou a freira, levando as mãos às faces — oh meu Deus, o que se passa debaixo de vossos olhos! Francisco de Mendonça casou!... O senhor tem a certeza disso?!
— Como quem assistiu ao casamento e à morte. Esta segunda parte é que sua sobrinha ignora, porque me não deu tempo. Agora convém que V. S.ª lha diga, para que a morte sirva de perdão ao ingrato, e a ingratidão lhe converta em quase indiferença a morte.
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