É assim que essa pobre menina há-de recuperar a tranquilidade que precisa; e eu, que espontaneamente aqui vim dar-lhe o golpe, que ninguém lhe queria dar, com o bom propósito de curar a ferida com o próprio sangue dela, retiro-me, delegando em V. S.ª o complemento da minha obra. Minha senhora, recebo as suas ordens.

Soror Rufina surgira de uma espécie de letargo, depois que o desconhecido saíra.

Foi ao quarto da sobrinha, e viu-a sentada no leito, com os cotovelos fincados nos joelhos, e o rosto entre as mãos. Saíam-lhe das pálpebras os olhos vidrentos e imóveis como os de um cadáver embalsamado. Parecia não ver alguém, e a respiração das pessoas, que a rodeavam, nem sequer se ouvia. O olhar de Carlota fazia terror.

A religiosa chamou-a três vezes, como a mãe delirante chamaria sua filha morta; o pavor, porém, daquele olhar sem luz nem movimento, parecia responder-lhe que estava morto o coração que devia ouvi-la. Rufina abraçou-a vertiginosamente, agitando-a com desespero: o corpo obedecia ao impulso, com a inerte obediência do cadáver, mas os olhos lá estavam na sua terrível imobilidade como que seguindo a alma que lhe fugira arrancada pelas garras de um demónio.

— Que é isto, senhor doutor! está morta minha sobrinha? — bradou a religiosa ao médico.

— Não está morta, minha senhora; pode estar demente.

Carlota Ângela soltou um profundo grito, ergueu-se sobre os joelhos no leito, travou das tranças com frenético delírio, deixou cair os braços semimortos, e recaiu no torpor de momentos antes.

Passado o espanto, todos os corações se derramaram ali em lágrimas. Não sabiam ao certo que imensa angústia era aquela; mas adivinhavam-na. Todas se voltaram para Jesus crucificado, de joelhos oraram chorando, e a oração era a mesma em todos os espíritos:

«Se ela está demente, levai-a, Senhor!»

Aquele estado era impossível longo tempo. Durante vinte e quatro horas sucediam-se as síncopes, cada vez mais prolongadas e assustadoras. O médico, descrido da acção dos antiespasmódicos, aconselhou que lhe falassem muito na causa daquele acidente, confiado na vitalidade febril que dão as agonias morais; e nas lágrimas consecutivas.

Assim o aconselhara; ninguém, todavia, queria encarregar-se de tão cruel flagelação.

Soror Rufina esperara a saída das incessantes visitas, para, com o socorro do Céu, executar o duro suplício de Carlota. O coração dizia-lhe que tal expediente seria um tormento inútil; mas o médico ajuntara ao conselho razões que a convenceram.

A sós, Carlota fitou-a com uma turvação de olhar, que deu quebranto à resolução da freira.

— Se ela está demente, de que serve este triste remédio?! — dizia soror Rufina. — Eu vou verter-lhe fel na chaga do coração, e nem posso ao menos contar com a inteligência dela para lhe falar à razão! Se Deus a chamasse a si, que maior felicidade lhe poderia eu desejar! Minha filha! — murmurou ela, aconchegando-a ao seio. — Tu não me conheces? Sou a tua boa tia, a melhor das tuas amigas. A tua dor me dói também, Carlota. É preciso que nos consolemos uma à outra. Diz-me uma palavra só, anjinho... Conheces a tua tia, menina?

— Se conheço!... — disse com meigo sorriso, Carlota, abraçando-a pelo pescoço. Rufina estremeceu de alegria, comprimindo com transporte o seio da sobrinha ao seu, e cobrindo-lhe de lágrimas e beijos a face.

— E és a minha querida filha, pois não és? — prosseguiu a freira. — É de mim que esperas alívios desta agonia, e amor para toda a vida? Aceitas as consolações de tua tia, crendo que é ela o instrumento de que a misericórdia de um Deus piedoso se serve?

— Não me fale em Deus! — bradou com impetuosa violência Carlota Ângela.

Rufina tremeu e empalideceu como assombrada de um raio.

— Está douda a infeliz! — disse ela. — Agora sim, creio que não há valer-lhe! Ó Mãe Santíssima, ó Senhor dos Aflitos, levai esta alma para vós... não consintais que os lábios digam blasfémias, que o espírito desta virtuosa criatura não sente.

— Não me fale em Deus! — repetiu Carlota, esgazeando sinistramente os olhos. — Não há Deus, nem justiça, nem misericórdia. Há inferno neste mundo para os inocentes, para os que, fugindo ao ódio humano, se acolhem ao amparo divino.

— Jesus! — atalhou a religiosa. — Que palavras são essas, filha!?

— Eu não merecia esta morte, minha tia. Que fiz eu para morrer assim desesperada de achar a remuneração de tamanha perfídia?! Abandonada, esquecida por ele... Que horror!

Carlota Ângela tapava o rosto, e arquejava, fugindo impetuosa aos braços da freira.

— Que horror! — continuava ela, apertando as fontes com as mãos, e tirando com violência pela respiração. — Traída por Francisco!... Todo este amor, o amor de toda a minha vida, calcado, desprezado, ao mesmo tempo que eu o ia alimentando com lágrimas diante daquela cruz, onde eu cuidei que se encontrava compaixão!...

— E encontra, minha filha; e ainda agora das chagas de Jesus Cristo está correndo o bálsamo que te há-de curar, Carlota!

— Curar-me!...