Até então dera-lhe o amor afouteza para responder às iras paternais; e a risonha esperança de permanecer poucas horas em casa, depois da expulsão de Mendonça, afigurava-se-lhe agora uma tenção criminosa. Era o medo que a transtornava assim; logo, porém, que o sobressalto se desvanecesse, viria a reacção do amor restituir-lhe o vigor de um propósito, cuja firmeza as ameaças do pai não abalariam.
Pouco depois, Carlota foi chamada ao quarto da mãe, e achou-a prazenteira e jovial. O pai entrou após ela, e fingiu o mais lhano e caricioso semblante. Carlota estava espantada, e não podia crer o que via.
— Diz-me cá, menina — disse Norberto —, já sabes... ora se sabes!...
— O quê, papá?
— Faz-te tolinha, minha serigaita! Arranjaste um marido, sem dizer água vai, assim do pé prà mão como quem se casa por sua conta e risco...
Carlota baixou os olhos com humildade. Norberto perdeu um pouco do seu carácter artificial, e prosseguiu:
— Ora, sempre tenho uma filha como se quer! Posso-me gabar!... Nem eu nem tua mãe valemos nada, Carlota! Vê-se um troca-tintas, e não há mais que dizer-lhe: Se quer casar comigo, estou aqui às suas ordens; vá pedir-me a meu pai, e diga-lhe que me dê o dote que ele me ganhou a trabalhar trinta anos. Isso é bonito, Carlota?
D. Rosália pisara rijamente o pé do marido, e conseguira recordar-lhe a traça combinada com o doutor. Carlota começava a sentir a reacção, ia erguendo a cabeça abatida para repelir a grosseira invectiva do pai, quando este, com velhaca subtileza, mudou para brando aspecto a severa carranca, e prosseguiu:
— Enfim, quem casa és tu; o mal e o bem para ti o fazes. Se queres casar com esse rapaz, casa. Eu disse-lhe o que um bom pai deve dizer. Consenti, contanto que a vontade de minha filha seja essa. Que dizes a isto, Carlota? Estás decidida a casar com o tal Sr. Mendonça?
— Visto que meu pai não se opõe à minha vontade...
— E, se eu não quisesse, casavas do mesmo modo?... Diz lá!
— Se o pai não quisesse, eu havia de pedir-lhe tanto que me deixasse ser feliz, que o meu bom pai... consentiria...
— Lá isso é verdade... — replicou o negociante, obedecendo à terceira pisadela da irmã do bacharel — eu o que quero é a tua felicidade... Bem sabes que sou teu amigo como ninguém, ainda que te pareça que lá o teu namorado te quer mais que eu... É boa asneira a das raparigas, que trocam pai e mãe pelo primeiro perna-fina que lhe empisca o olho ao dote!... (Quarta pisadela de Rosália, e mutação de cara e diapasão de voz em Norberto.) Está dito! Casarás com o homem; mas já agora hão-se de festejar os teus dezessete anos em casa. Eu já lhe disse a ele que esperasse um mês, e depois arranja-se isso, e está acabado o negócio. O rapaz, pelos modos, é pobre; mas o teu dote, se Deus quiser, chegará para tudo. Estás contente, Carlota?
— Oh meu querido pai! — exclamou ela, beijando-lhe afervoradamente a mão — eu sabia que era muito meu amigo; mas não esperava tanto da sua boa alma. Fui má filha em ter guardado este segredo; perdoem-me, por quem são; é que eu tremia só da ideia de os desgostar, não podendo sufocar o amor que lhe tenho... a ele...
— Não chores, Carlota, que não tens por que chorar... — disse D. Rosália.
— Eu choro de contentamento, minha mãe, por ver que a minha ventura é possível sem desgostar meus pais... Sou a mulher mais feliz da Terra. Queria que toda a gente soubesse agora os bons pais que o Senhor me deu.
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