Tomara eu ver o tio Joaquim para o despersuadir de um mau juízo que ele fazia do meu querido pai, quando, faz agora um ano, me disse que eu não alcançaria o seu consentimento para casar com Francisco de Mendonça; e também queria abraçá-lo, porque respeitou a minha paixão, e nunca mais me contradisse.

A alegria dava a Carlota uma ousadia entusiástica, que espantava Norberto, e tinha semiaberta a boca de Rosália.

— Se a minha mãe conhecesse a nobre alma dele! — prosseguiu ela — havia de amá-lo também.

— Eu?... ora essa! tu és maluca! — atalhou Rosália, compreendendo à letra a palavra amá-lo.

Maluca! porquê, minha mãe?

— Pois tu disseste aí que eu havia de amar o tal homem!

— Pois se ele tem um coração tão bem formado! Esteve mais de um ano sem me dizer que queria ser meu esposo, para que eu não pensasse que ele namorava a minha riqueza. Foi preciso dizer-lhe eu que a minha maior ambição neste mundo era fazê-lo senhor do meu coração para toda a vida. Quando eu disse isto, até chorava de alegria ele!...

— Está bom, está bom, estamos decididos — disse Norberto, receando que os diques da ira se esboroassem. — Logo que o tio doutor venha de Lisboa trata-se disto. Amanhã vamos para o Candal. Lá é escusado andar com falatórios do mirante para a estrada. Cá não se usa as noivas andarem a namoriscar à surdina. Já se sabe que ele há-de ser teu marido; o tio doutor quando vier, há-de convidá-lo para nossa casa, e então conversarão à sua vontade.

Norberto saiu com as faces incendiadas, como se a raiva abafada respirasse por elas. D. Rosália, porém, menos firme no fingimento, apenas o marido saiu, começou a pingar dos olhos umas lágrimas baças e granulosas como camarinhas.

Carlota acudiu a enxugar-lhas com meiguice, consolando-a com a esperança de viverem sempre juntos, como até então. Rosália, se a boa-fé nos não engana, chorava com pena da filha, por ver que todo aquele contentamento se havia de mudar em amargura, se não falhasse o estratagema do doutor.

Deixá-la chorar, que o seio de Carlota parece alargar-se ao pulsar veemente do coração. Essa imensa alegria, que lhe deram, leal ou traiçoeira, há-de produzir a bem-aventurança ou o inferno daquela família.

Carlota tem a alma briosa e amante de mais para transigir com a perfídia.

A obediência filial, máscara de corrupção com que algumas donzelas se disfarçam para abjurarem sem pejo ligações inconvenientes, é uma «virtude» dos nossos dias, importada... da América. Em 1806 não havia disso cá.

III

Tu me matas, meu pai! Quem tal pensara?

Eu beijo a mão que o golpe me prepara.

Marquesa de Alorna

A traça do bacharel Joaquim António de Sampaio era afastar Mendonça de Portugal, repentinamente.

Aconselhara ele a mentira, para evitar o escândalo de um rapto, ou a saída judiciária de Carlota.

Ausentar Mendonça para alguma das colónias, ou para os estados barbarescos, sob pretexto de guerra à pirataria, que infestava então o Mediterrâneo; e prolongar essa ausência até dissuadir Carlota, cortando-lhe os meios de se escreverem, era a trapaça do hábil jurisconsulto. Norberto, pasmado de tamanho ardil, fez tão estremado conceito do doutor que, no expandir-se da sua admiração, exclamou:

— Ó cunhado! você é homem de todos os diabos! Quem sabe, sabe!

— Mas, Norberto — disse o doutor —, sabe que sem dinheiro nada se faz?

— Saque o que quiser, cunhado!

— Eu tenho talvez de comprar muito caro o pretexto para a saída de Mendonça. Não sei se me verei a braços com os protectores e parentes dele na corte, e as nossas armas são o dinheiro.

— Pois é dizer o que quer. O doutor leva ordem franca; não poupe dinheiro, e ponha-me o homem fora da nação.

Assim armado com o invencível dinheiro, o tio de Carlota Ângela chegou a Lisboa, em fins de 1806, levando cartas de apresentação para o ministro da Marinha, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, para D. Catarina Balsemão, e para o intendente geral da polícia, Diogo Inácio de Pina Manique.

A matéria que então mais se discutia era a demência do príncipe regente, causada por sofrimentos dos que tornam ridículo um marido, ainda que o motivo seja mais para compaixão que riso. Falava-se na morte violenta de José Anastácio, em Mafra, empeçonhado por ter sido o espia e delator da conspiração urdida contra o príncipe, em Arroios, numa casa da condessa de Alorna, que emigrara para Inglaterra, descoberta a conjuração. Os rumores surdos contra os pedreiros-livres indicavam os indivíduos suspeitos, mormente depois que o escritor público Hipólito da Costa fugira dos cárceres da Inquisição, que lhe foram abertos pelo braço poderoso da Maçonaria. Hipólito, autor, depois, do Correio Brasiliense, devia a liberdade à embriaguez dos guardas e à astúcia dele; convinha, porém, ao governo simular-se assustado do poder da Maçonaria para encruar contra os suspeitos a sanha da plebe. É, porém, certo que a Maçonaria, em Portugal, entrara em 1797, com os emigrados franceses, e pudera a muito custo implantar-se numa pequena sociedade ou loja denominada Fortaleza, quase desconhecida e despercebida até 1806. Só depois que o ministro do Reino entregou à Inquisição um pedreiro-livre, e o ímpio fugiu do cárcere do Rossio, levando nos canos das botas os «Regimentos da Inquisição» reformados pelo marquês de Pombal, dos quais publicou, em ar de zombaria, curiosos extractos no jornal que, depois, redigiu em Londres — só depois desses néscios medos e estúpidas perseguições do governo, sempre providenciais para acordar os povos do letargo, é que a sociedade maçónica em Portugal se radicou, floresceu, e deu frutos bons e maus. (Os de hoje apodrecem todos antes de madurar.)

A questão dos pedreiros-livres revirou os projectos do bacharel portuense. Nova ideia lhe acudiu, quando principiava a mortificá-lo o receio de não poder suplantar um frade beneditino bem aparentado, que se dizia ser pai de Francisco Salter de Mendonça. Essa ideia era denunciar o tenente de marinha como encarregado de fundar no Porto uma loja maçónica, para o que tratava de intimidade com Jerónimo José Rodrigues, arcediago de Barroso, o primeiro liberal que teve a cidade eterna, antes de pregoar-se a liberdade em Portugal.

Francisco Salter de Mendonça conhecia o arcediago, era sua visita, simpatizava com as suas doutrinas políticas, e deixara-se eivar do espírito de vaga novidade que os princípios de liberalismo balbuciavam ainda então confusamente. Não era, todavia, pedreiro-livre, porque venerava o frade que o adiantara na carreira das armas, e queria cumprir o juramento que fizera, nas mãos do monge, de jamais se associar à seita dos inimigos de Deus, conquanto conhecesse a inépcia dos farisaicos amigos do altar.

O tio de Carlota apresentou-se a D. Catarina de Balsemão, ouviu-lhe dois sonetos, aplaudiu-lhos até chorar de terno entusiasmo, e disse, depois, o fim a que ia.