Pintou com negras cores o roer profundo do cancro da Maçonaria no seio da sociedade; lastimou a inevitável queda dos foros e prerrogativas da classe nobre, se a média se incorporasse para desarreigar a árvore de séculos; disse que a Maçonaria fizera Sila, e Robespierre, e Bonaparte; ajuntou outras muitas tolices em linguagem garrafal, até incendiar a combustível D. Catarina, que logo ali lhe deu carta de mui especial recomendação para Manique.

O intendente ouviu com atenção e medo o bacharel. Soube que Francisco Salter de Mendonça, mancomunado com o arcediago de Barroso e outros, tratava de fundar uma loja maçónica no Porto, convencendo os tímidos com a sua eloquência revolucionária, e prometendo aos ilusos a restauração dos direitos dos povos, vitimados que fossem os reis e os grandes. Acrescentava o bacharel que Salter de Mendonça traduzia e espalhava os escritos mais incendiários dos revolucionários franceses em 1791, e propalava que Portugal não podia ser feliz sem mandar um rei de companhia a Luís XVI.

Manique estava transido! O orador, electrizado com o pasmo do ouvinte, entrara na sua hora feliz. As imagens mais ensanguentadas, as metáforas mais patibulares, os tropos mais coriscantes acudiam-lhe com trovejante iracúndia. Digna de melhor destino, a fúria oratória do letrado do Porto conseguira mais que o desejado. Manique susteve-lhe a torrente, prometendo providências prontas, e acabou por lhe pedir que ficasse na intendência exercendo o lugar do ajudante, assassinado em Mafra, José Anastácio.

Aqui é que o bacharel se achou superior a si mesmo, e deu um mental adeus ao safado tostão dos conselhos, que raros clientes lhe levavam, no Porto, ao seu obscuro escritório da Rua de Santa Catarina.

Confiado na sua estrela, o nomeado ajudante do intendente geral da polícia perguntou ao chefe o que tencionava S. Ex.ª fazer a Francisco Salter. Manique respondeu que o faria conduzir preso a Lisboa, e do Limoeiro passaria para a Inquisição.

— Se V. Ex.ª me permite uma reflexão... — disse o bacharel.

— Diga lá, que eu respeito muito o seu parecer.

— Com o devido respeito e humildade que se deve aos atilados juízos de V. Ex.ª, peço licença para observar que convém obrar com mansidão e parcimónia, para impedir que uma seita perseguida faça prosélitos. Eu vou, com o maior respeito, lembrar a V. Ex.ª trinta e tantos casos da história, dos quais se vê quão imprudente e perigoso é empregar o cautério à borbulha que muitas vezes resolve sem medicamento, e quase sempre lavra quando a fazem sangrar. Começarei primeiro pela seita luterana, a qual seita luterana...

— Tem a bondade de não exemplificar... — atalhou o intendente, que detestava cordialmente as novidades tanto em política como em história. — Que entende o senhor que se deve fazer? Desprezar? Deixar rebentar o vulcão? Então de que me servem as tristes novas que me trouxe?!

— Desprezar, não, Excelentíssimo senhor! Que faz o hábil agricultor ao galho seco da sua árvore? Corta-o, separa-o das vergônteas vivazes, mas não o lança à estrada, para que o passageiro o leve como cousa sem dono, nem o desfaz com o machado como objecto sem utilidade. Leva-o para casa, lança-o na lareira, e aquece-se a ele. Façamos a aplicação: Francisco Salter é o membro contaminado e daninho: cumpre decepá-lo, para que não empeçonhe os outros; cumpre aproveitá-lo, a fim de que os inimigos da ordem se não aproveitem dele; cumpre empregá-lo em serviço da pátria; mas seja onde as suas tendências revolucionárias não catequizem incautos. Mendonça é tenente; promova-se a capitão, e (permita-me V. Ex.ª o arrojo de dar o meu parecer com a franqueza própria de um português, homem de bem) seja sem perda de tempo enviado como comandante do primeiro vaso que sair para o Brasil, dispondo de modo a sua expedição, que ele só volte à metrópole passados anos. Esta é a minha humilde opinião.

O bacharel concluiu, dobrando o pescoço até bater com a barba no peito. Manique redarguiu debilmente em oposição aos princípios fabianos do bacharel. Sampaio replicou, pedindo sempre mil perdões da audácia, e alfim superou o chefe, fortalecendo-se com a dificuldade de provar a denúncia, visto que as testemunhas presenciais das arengas revolucionárias de Mendonça não jurariam contra ele.

Nesse dia expediu-se ordem para recolher a Lisboa o tenente da corveta Audaz, Francisco Salter de Mendonça, no prazo de oito dias. Aprestou-se um brigue, que devia, dois dias depois da chegada do oficial, fazer-se à vela para o Rio de Janeiro, capitaneado por Salter, promovido a capitão.

O ajudante do intendente geral da polícia, escrevendo a seu cunhado Norberto de Meireles, dizia:

«Tenho lutado com enormes dificuldades. Saquei seis mil cruzados, e venci as primeiras; as outras hão-de vencer-se... etc.»

Donde se infere que o agente de Norberto de Meireles estimara em seis mil cruzados as duas arrepiadas arengas à célebre poetisa e ao intendente geral da polícia.

IV

Salada

Ai!¡ no me dejes nunca!

Aden

¿Yo dejarte?

¿Y para qué, y porque?! tu mi querida!

¿Ni como, aunc quisiera abandonarte

Juntos tu y yo lanzados en la vida?

Espronceda (El Diablo Mundo)

Fazia tristeza e saudade a formosa lua de uma noite de Agosto naqueles olorosos jardins do Candal.

Era meia-noite, e a viração do mar bafejava mansamente as copas dos arvoredos, que circuitavam a sombria casa de Norberto de Meireles, o qual, a essa hora, ressonava mais alto que todos os seres vivos da natureza em roda.

De mansinho rodou a porta que abria para o jardim. Um vulto deslizou por entre os mirtos e japoneiras, até ganhar o mirante erguido num ângulo do jardim.

— Esperaste muito? — disse ela a Francisco Salter, que lhe saíra de sob a ramagem sombria dos chorões debruçados no muro. — Tem paciência, meu amigo. Minha mãe deitou-se há meia hora; não sei que ar de inquieta alegria ela tinha hoje, que lhe não chegava o sono...

— Seria tão viva a alegria dela, como é viva a amargura que me não deixara dormir a mim?

— Amargura! Que tens, Francisco?

— Não te falou por mim o meu bilhete desta tarde?

— O teu bilhete?...