Para as torturas de um adeus, entre duas almas animadas por um só espiráculo de vida, sei eu que há na língua humana uma palavra, uma só: INFERNO. Isso é pior que o morrer, porque na morte há o esquecer graduado por cada estalar de fio que nos atava aos poucos bens deste mundo: há o extremo dom do árbitro das vidas — a resignação sem luta, o luzir da estrela esperançosa que se ergue detrás do túmulo, o recordar-se dos anseios para Deus, quando as brilhantes ilusões da Terra se convertiam num como ténue vapor de incenso que nos prendia aos olhos lagrimosos até o vermos entrar no Céu.
Mas o adeus de Carlota Ângela a Francisco de Mendonça!... Essas derradeiras palavras, que já não eram mais que um longo gemido, convulso, sufocado, a cada ímpeto dos dois corações que rasgavam os peitos para se juntarem!...
Linda expirava a noite. Raiava a aurora, empalidecendo as estrelas. Uma auréola de frouxa luz cintava os horizontes. Na extrema orla do mar enrubesciam-se as águas, e calava-se o rumorejar da vaga, como para ouvir o hino matinal dos madrugadores alados.
Era um formoso amanhecer aquele! Tão donoso, tão alegre, tão radiante tudo, só tu, Carlota, com os olhos na colina onde viste o derradeiro adeus do amante, e a mão no seio como a suster a vida que te foge, perguntas à tua razão se tamanha angústia não é um sonho! Acorda, mártir, que o teu dia de desgraça amanheceu, e será longo!
V
Sai se o vulto de meu corpo
Mas ei non.
Cá ós çocos vos fica morto
O coraçon.
Egas Moniz Coelho (?)
... Si notre affection est traversée; si elle rencontre des obstacles, elle réagit, et cette réaction, impétueuse, convulsive, comme celle de tout ressort agitée et comprime, nous porte à des mouvements désordonnés, par conséquent accompagnés de souffrance. Notre affection, alors, devient passion. Et comme les obstacles qui l’irritent ne peuvent jamais être places que par les intérêts d’autres personnes, elle nous anime d’une violente haine contre ces personnes si offensives, si importunes; elle change notre douceur en brusquerie, notre générosité en sentiments odieux.
Azais (Précis du Système Universel)
Francisco Salter foi, naquele mesmo dia, ao Candal oferecer a Norberto de Meireles os seus serviços em Lisboa, onde era chamado pressurosamente.
O negociante não tinha prática ou habilidade bastante para simular no rosto a surpresa ou o descontentamento da inesperada ausência do genro apalavrado. Manifestou, em toda a expressiva estupidez com que a providência dos grosseiros velhacos lhe dotara a fisionomia, a alegria danada que lhe não cabia no bojo do peito. Mendonça evidenciou as suas suspeitas, e arrependeu-se de não ter convertido em peçonha toda aquela alegria, aceitando a fuga de Carlota, horas antes.
— Desejava despedir-me das senhoras — disse Mendonça.
— Minha mulher — tartamudeou o negociante — foi à missa, e mais a menina, a uma capelinha à Bandeira, senão com todo o gosto...
Mendonça, quando entrara o portão da quinta, vira Carlota através de uma vidraça. Carlota, pé ante pé, viera, a ocultas da mãe, avizinhar-se da sala, com o sentido de, caso o pai a não chamasse, entrar na sala onde Mendonça estava, como de passagem para outra, e fingir-se surpreendida do encontro.
Foi o que ela fez ao tempo em que o negociante acabava de improvisar uma missa na capela da Bandeira.
— Ai! — exclamou ela — estavam aqui!...
— Acabava eu de pedir licença ao Sr. Meireles — disse Mendonça, sorrindo ironicamente — para oferecer a V. S.ª e a sua mãe o meu préstimo em Lisboa, para onde parto hoje às quatro horas da tarde.
O arrozeiro, em pé, com os braços estendidos ao longo dos flancos abdominais, abria e fechava as mãos, como um idiota: não sabia fazer outra gesticulação mais parva, quando a sua inépcia fosse tal que se lhe fechassem todas as evasivas de uma posição falsa.
— O Sr. Norberto — prosseguiu Francisco Salter, cedendo ao prazer de afrontar a mentira do vilão diante da própria filha — disse-me que V. S.ª e sua mãe estavam na Bandeira ouvindo missa, e eu... retirava-me...
Carlota encarou o velho, e viu um trejeitar de olhos, que a obrigou a baixar os dela, por vergonha de si e de seu pai. Salter teve dó de ambos, e mudou de conversação.
— Não sei que motivos imprevistos me chamam a Lisboa; talvez as ameaças de uma nova invasão espanhola, ou bem pode ser que se tema um definitivo assalto da França...
— Pois virão cá esses hereges de Napoleão?! — exclamou o negociante, já transfigurado pelo susto dos franceses, mal incomparavelmente maior, que destruiu o vexame em que o deixou a aparição da filha.
— Pode ser que venham, Sr. Norberto, responder ao desafio que lhes mandámos pelos nossos soldados do Roussillon, quando a França liquidava as suas contas com a Espanha.
Norberto não o entendeu; mas redarguiu:
— Se eles cá vêm, é contar que não deixam nada; diz que metem a saque tudo quanto topam, pois não metem?
— É possível; mas V. S.ª previna-se, escondendo o seu precioso aqui no Candal, por exemplo, onde decerto os franceses não virão. Aí está o inconveniente de ser rico. Já o Sr. Norberto está a sofrer com o medo de que o obriguem a uma contribuição...
— Se lhe parece.... o caso não é para menos: quem não tem nada, tanto se lhe dá como se lhe deu; mas quem lhe custou a ganhar o que tem, pouco ou muito, quer paz e sossego.
— Não se aterre antes de tempo, Sr. Norberto — replicou Mendonça, sorrindo a Carlota —, quando os franceses invadissem Portugal, eu ajudaria a V. S.ª a defender o que é seu, não só como esposo de sua filha, mas também como seu amigo.
— Isso lá... — regougou o merceeiro — muito obrigado, não me despeço do favor: mas o senhor é militar, e quando isso for não lhe há-de faltar por lá que fazer, na guerra do mar.
— Assim aconteceria — tornou Mendonça, enterrando lentamente o estilete observador — se eu não tencionasse pedir a minha baixa do serviço, para evitar que as revoluções perturbem a felicidade de minha mulher e a minha.
— Então que modo de vida queria o senhor ter, se casasse com a minha Carlota?
— Outro qualquer mais permanente, mais descansado; negociante, por exemplo.
— E que é dos fundos?
— Fundos?
— Sim, o casco do negócio?
— O casco!... a que chama V. S.ª casco?
— Casco é o cabedal para começar.
— Meu sogro dar-me-ia...
— Dinheiro?! meu amiguinho, está quase todo empregado em torrões; e eu, enquanto vivo, não dou nada.
— Mais uma razão — replicou Mendonça, condoído do vexame de Carlota, e seguro, mais que seguro, do vilão carácter do arrozeiro — mais uma razão para V. S.ª não recear a invasão dos franceses...
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