Até

aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam

muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as

atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de

presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então

que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho.

Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A

velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada,

fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas

que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente,

foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e

pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos,

remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória

delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí

foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e

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pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam

ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e

pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para

desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as

ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.

Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram

inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma

intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do

ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante

para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a

cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que

fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas

anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas

despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal

compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta

tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter

com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das

cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se

sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro,

e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles,

tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio

particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a

suspeita ou denúncia.