"-- Então eu estou muito doente, boa mamãe?

 

"-- Não, minha filha, ele assegurou que não tens nada;

 

é apenas um incômodo nervoso.

 

"E minha querida mãe, não podendo mais conter as lágri-

 

mas que saltavam dos olhos, fugiu, pretextando uma ordem

 

a dar.

 

"Então, à medida que a minha inteligência ia saindo do

 

letargo, comecei a refletir sobre o que se tinha passado.

 

"Aquele desmaio tão longo, aquelas palavras que eu ou-

 

vira ainda entre as névoas de um sono agitado, as lágrimas de

 

minha mãe e a sua repentina aflição, o tom condoído com que

 

o médico lhe falara.

 

"Um raio de luz esclareceu de repente o meu espírito.

 

Estava desenganada.

 

-O poder da ciência, o olhar profundo, seguro, infalível,

 

desse homem que lê no corpo humano como em um livro

 

aberto, tinha visto no meu seio um átomo imperceptível.

 

"E esse átomo era o verme que devia destruir as fontes

 

da vida, apesar dos meus dezesseis anos, apesar de minha orga-

 

nização, apesar de minha beleza e dos meus sonhos de feli-

 

cidade!"

 

Aqui terminava a primeira folha, que eu acabei de ler

 

entre as lágrimas que me inundavam as faces e caíam sobre

 

o papel.

 

Era este o segredo de sua estranha reserva; era a razão

 

por que me fugia, por que se ocultava, por que ainda na

 

véspera dizia que se tinha imposto o sacrifício de nunca ser

 

amada por mim.

 

Que sublime abnegação, minha prima! E, como eu me

 

sentia pequeno e mesquinho à vista desse amor tão nobre!

 

VII

 

CONTINUEI a ler :

 

"Sim, meu amigo!...

 

"Estava condenada a morrer; estava atacada dessa mo-

 

léstia fatal e traiçoeira, cujo dedo descarnado nos toca no

 

meio dos prazeres e dos risos, nos arrasta ao leito, e do leito

 

ao túmulo, depois de ter escarnecido da natureza, transfigu-

 

rando as suas belas criações em múmias animadas.

 

"É impossível descrever-te o que se passou então em mim;

 

foi um desespero mudo e concentrado, mas que me prostrou em

 

uma atonia profunda; foi uma angústia pungente e cruel.

 

"As rosas da minha vida apenas se entreabriam e já eram

 

bafejadas por um hálito infetado; já tinham no seio o germe

 

de morte que devia fazê-las murchar!

 

"Meus sonhos de futuro, minhas tão risonhas esperanças,

 

meu puro amor, que nem sequer ainda tinha colhido o primei-

 

ro sorriso, este horizonte, que há pouco me parecia tão bri-

 

lhante, tudo isto era uma visão que ia sumir-se, uma luz que

 

lampejava prestes a extinguir-se.

 

"Foi preciso um esforço sobre-humano para esconder de

 

minha mãe a certeza que eu tinha sobre o meu estado e para

 

gracejar dos seus temores, que eu chamava imaginários.

 

"Boa mãe! Desde então só viveu para consagrar-se exclu-

 

sivamente à sua filha, para envolvê-la com esse desvelo e essa

 

proteção que Deus deu ao coração materno, para abrigar-me

 

com suas preces, sua solicitude e seus carinhos, para lutar à

 

força de amor e de dedicação contra o destino.

 

"Logo no dia seguinte fomos para Andaraí, onde ela alu-

 

gara uma chácara, e aí, graças a seus cuidados, adquiri tanta

 

saúde, tanta força, que me julgaria boa se não fosse a sen-

 

tença fatal que pesava sobre mim.

 

"Que tesouro de sentimento e de delicadeza que é um co

 

ração de mãe, meu amigo! Que tato delicado, que sensibilida-

 

de apurada, possui esse amor sublime!

 

"Nos primeiros dias, quando ainda estava muito abatida

 

e era obrigada a agasalhar-me, se visses como ela pressentia

 

as rajadas de um vento frio antes que ele agitasse os renovos

 

dos cedros do jardim, como adivinhava a menor neblina antes

 

que a primeira gota umedecesse a laje do nosso terraço!

 

"Fazia tudo por distrair-me; brincava comigo como uma

 

camarada de colégio; achava prazer nas menores coisas para

 

excitar-me a imitá-la; tornava-se menina e obrigava-me a ter

 

caprichos.

 

"Enfim, meu amigo, se fosse a dizer-te tudo, escreveria

 

um livro e esse livro deves ter lido no coração de tua mãe,

 

porque todas as mães se parecem.

 

"Ao cabo de um mês tinha recobrado a saúde para todos,

 

exceto para mim, que às vezes sentia um quer que seja como

 

uma contração, que não era dor, mas que me dizia que o mal

 

estava ali, e dormia apenas.

 

"Foi nesta ocasião que te encontrei no ônibus de Andaraí ;

 

quando entravas, a luz do lampião iluminou-te o rosto e eu

 

te reconheci.

 

"Faze idéia que emoção sentira quando te sentaste junto

 

de mim.

 

"O mais tu sabes; eu te amava e era tão feliz de ter-te ao

 

meu lado, de apertar a tua mão, que nem me lembrava como

 

te devia parecer ridícula uma mulher que, sem te conhecer,

 

te permitia tanto.

 

"Quando nos separamos, arrependi-me do que tinha feito.

 

"Com que direito ia eu perturbar a tua felicidade, conde-

 

nar-te a um amor infeliz e obrigar-te a associar tua vida a uma

 

existência triste, que talvez não te pudesse dar senão os tor-

 

mentos de seu longo martírio?!

 

"Eu te amava; mas, já que Deus não me tinha concedido a

 

graça de ser tua companheira neste mundo, não devia ir rou-

 

bar ao teu lado e no teu coração o lugar que outra mais feliz,

 

porém menos dedicada, teria de ocupar.

 

"Continuei a amar-te, mas impus-me a mim mesma o sa-

 

crifício de nunca ser amada, por ti.

 

"Vês, meu amigo, que não era egoísta e preferia a tua à

 

minha felicidade. Tu farias o mesmo, estou certa.

 

"Aproveitei o mistério do nosso primeiro encontro e es-

 

perei que alguns dias te fizessem esquecer essa aventura e

 

quebrassem o único e bem frágil laço que te prendia a mim.

 

"Deus não quis que acontecesse assim; vendo-te só em

 

um baile, tão triste, tão pensativo, procurando um ser invisí-

 

vel, uma sombra e querendo descobrir os seus vestígios em

 

algum dos rostos que passavam diante de ti, senti um prazer

 

imenso.

 

"Conheci que tu me amavas; e, perdoa, fiquei orgulhosa

 

dessa paixão ardente, que uma só palavra minha havia criado,

 

desse poder do meu amor, que, por uma força de atração inex-

 

plicável, tinha-te ligado à minha sombra.