"Não pude resistir.

 

"Aproximei-me, disse-te uma palavra sem que tivesses tem-

 

po de ver-me; foi essa mesma palavra que resume todo o poe-

 

ma do nosso amor e que, depois do primeiro encontro, era,

 

como ainda hoje, a minha prece de todas as noites.

 

"Sempre que me ajoelho diante do meu crucifixo de mar-

 

fim, depois de minha oração, ainda com os olhos na cruz e o

 

pensamento em Deus, chamo a tua imagem para pedir-te que

 

não te esqueças de mim.

 

"Quando tu te voltaste ao som da minha voz, eu tinha en-

 

trado no toilette; e pouco depois saí desse baile, onde apenas

 

acabava de entrar, tremendo da minha imprudência, mas ale-

 

gre e feliz por te ter visto ainda uma vez.

 

"Deves agora compreender o que me fizeste sofrer no tea-

 

tro quando me dirigias aquela acusação tão injusta, no momen-

 

to mesmo em que a Charton cantava a ária da Traviata.

 

"Não sei como não me traí naquele momento e não te

 

disse tudo; o teu futuro, porém, era sagrado para mim, e eu

 

não devia destruí-lo para satisfação de meu amor próprio ofen-

 

dido.

 

"No dia seguinte escrevi-te; e assim, sem me trair, pude

 

ao menos reabilitar-me na tua estima; doía-me muito que,

 

ainda mesmo não me conhecendo, tivesses sobre mim uma

 

idéia tão injusta e tão falsa.

 

"Aqui é preciso dizer-te que no dia seguinte ao do nosso

 

primeiro encontro, tínhamos voltado à cidade, e eu te via pas-

 

sar todos os dias diante de minha janela, quando fazias o teu

 

passeio costumado à Glória.

 

"Por detrás das cortinas, seguia-te com o olhar, até que

 

desaparecias no fim da rua, e este prazer, rápido como era,

 

alimentava o meu amor, habituado a viver de tão pouco.

 

"Depois da minha carta tu deixaste de passar dois dias,

 

estava eu a partir para aqui, donde devia voltar unicamente

 

para embarcar no paquete inglês.

 

"Minha mãe, incansável nos seus desvelos, quer levar-me

 

à Europa e fazer-me viajar pela Itália, pela Grécia, por todos

 

os países de um clima doce.

 

"Ela diz que é para - mostrar-me os grandes modelos de

 

arte e cultivar o meu espírito, mas eu sei que essa viagem é a

 

sua única esperança, que não podendo nada contra a minha

 

enfermidade, quer ao menos disputar-lhe a sua vítima durante

 

mais algum tempo.

 

"Julga que fazendo-me viajar, sempre me dará mais al-

 

guns dias de existência, como se estes sobejos de vida valessem

 

alguma coisa para quem já perdeu a sua mocidade e o seu

 

futuro.

 

"Quando ia embarcar para aqui, lembrei-me de que tal-

 

vez não te visse mais e, diante dessa derradeira provança, su-

 

cumbi. Ao menos o consolo de dizer-te adeus!...

 

"Era o último!

 

"Escrevi-te segunda vez; admirava-me da tua demora, mas

 

tinha uma quase certeza de que havias de vir.

 

"Não me enganei.

 

"Vieste, e toda a minha resolução, toda a minha coragem

 

cedeu, porque, sombra ou mulher, conheci que me amavas como

 

eu te amo.

 

"O mal estava feito.

 

"Agora, meu amigo, peço-te por mim, pelo amor que me

 

tens, que reflitas no que te vou dizer, mas que reflitas com

 

calma e tranqüilidade.

 

"Para isto parti hoje de Petrópolis, sem prevenir-te, e

 

coloquei entre nós o espaço de vinte e quatro horas e uma

 

distância de muitas léguas.

 

"Desejo que não procedas precipitadamente e que, antes

 

de dizer-me uma palavra, tenhas medido todo o alcance que

 

ela deve ter sobre o teu futuro.

 

"Sabes o meu destino, sabes que sou uma vítima, cuja

 

hora está marcada, e que todo o meu amor, imenso, profundo,

 

não te pode dar talvez dentro em bem pouco senão o sorriso

 

contraído pela tosse, o olhar desvairado pela febre e carícias

 

roubadas aos sofrimentos.

 

"É triste; e não deves imolar assim a tua bela mocidade,

 

que ainda te reserva tantas venturas e talvez um amor como

 

o que eu te consagro.

 

"Deixo-te, pois, meu retrato, meus cabelos e minha histó-

 

ria; guarda-os como uma lembrança e pensa algumas vezes

 

em mim: beija esta folha muda, onde os meus lábios deixa-

 

ram-te o adeus extremo.

 

"Entretanto, meu amigo, se, como tu dizias ontem, a feli-

 

cidade é amar e sentir-se amado; se te achas com forças de

 

partilhar essa curta existência, esses poucos dias que me res-

 

tam a passar sobre a terra, se me queres dar esse consolo su-

 

premo, único que ainda embelezaria minha vida, vem!

 

"Sim, vem! iremos pedir ao belo céu da Itália mais al-

 

guns dias de vida para nosso amor; iremos aonde tu quiseres,

 

ou aonde nos levar a Providência.

 

"Errantes pelas vastas solidões dos mares ou pelos cimos

 

elevados das montanhas, longe do mundo, sob o olhar protetor

 

de Deus, à sombra dos cuidados de nossa mãe, viveremos tanto

 

um como outro, encheremos de tanta afeição os nossos dias, as

 

nossas horas, os nossos instantes, que, por curta que seja a

 

minha existência, teremos vivido por cada minuto séculos de

 

amor e de felicidade.

 

"Eu espero; mas temo.

 

"Espero-te como a flor desfalecida espera o raio de sol que

 

deve aquecê-la, a gota de orvalho que pode animá-la, o hálito

 

da brisa que vem bafejá-la. Porque para mim o único céu

 

que hoje me sorri, são teus olhos; o calor que pode me fazer

 

viver, é o do teu seio.