"Entretanto temo, temo por ti, e quase peço a Deus que
te inspire e te salve de um sacrifício talvez inútil!
"Adeus para sempre, ou até amanhã!"
CARLOTA
VIII
DEVOREI toda esta carta de um lanço de olhos.
Minha vista corria sobre o papel como o meu pensamento,
sem parar, sem hesitar, poderia até dizer sem respirar.
Quando acabei de ler, só tinha um desejo: era o de ir
ajoelhar-me a seus pés e receber como uma bênção do céu esse
amor sublime e santo.
Como sua mãe, lutaria contra o destino, cercá-la-ia de
tanto afeto e de tanta adoração, tornaria sua vida tão bela e
tão tranqüila, prenderia tanto sua alma à terra, que lhe seria
impossível deixá-la.
Criaria para ela com o meu coração um mundo novo, sem
as misérias e as lágrimas deste mundo em que vivemos; um
mundo só de ventura, onde a dor e o sofrimento não pudessem
penetrar.
Pensava que devia haver no universo algum lugar desco-
nhecido, algum canto de terra ainda puro do hálito do homem,
onde a natureza virgem conservaria o perfume dos primeiros
tempos da criação e o contato das mãos de Deus quando a
formara.
Aí era impossível que o ar não desse vida; que o raio do
sol não viesse impregnado de um átomo de fogo celeste; que
a água, as árvores, a terra, cheia de tanta seiva e de tanto
vigor, não inoculassem na criatura essa vitalidade poderosa
da natureza no seu primitivo esplendor.
Iríamos, pois, a uma dessas solidões desconhecidas; o
mundo abria-se diante de nós e eu sentia-me com bastante for-
ça e bastante coragem para levar o meu tesouro além dos ma-
res e das montanhas, até achar um retiro onde esconder a
nossa felicidade.
Nesses desertos, tão vastos, tão extensos, não haveria se-
quer vida bastante para duas criaturas que apenas pediam um
palmo de terra e um sopro de ar, a fim de poderem elevar a
Deus, como uma prece constante, o seu amor tão puro?
Ela dava-me vinte e quatro horas para refletir e eu não
queria nem um minuto, nem um segundo.
Que me importavam o meu futuro e a minha existência
se eu os sacrificaria de bom grado para dar-lhe mais um dia
de vida?
Todas estas id éias, minha prima, cruzavam-se no meu es-
pirito, rápidas e confusas, enquanto eu fechava na caixinha
de pau-cetim os objetos preciosos que ela encerrava, copiava
na minha carteira a sua morada, escrita no fim da carta, e
atravessava o espaço que me separava da porta do hotel.
Aí encontrei o criado da véspera.
-- A que horas parte a barca da Estrela?
-- Ao meio-dia.
Eram onze horas; no espaço de uma hora eu faria as
quatro léguas que me separavam daquele porto.
Lancei os olhos em torno de mim com uma espécie de
desvario.
Não tinha um trono, como Ricardo III, para oferecer em
troca de um cavalo; mas tinha a realeza do nosso século, tinha
dinheiro.
A dois passos da porta do hotel estava um cavalo, que o
seu dono tinha pela rédea.
-- Compro-lhe este cavalo, disse eu, caminhando para ele,
sem mesmo perder tempo em cumprimentá-lo.
-- Não pretendia vendê-lo, respondeu-me o homem cor-
tesmente; mas, se o senhor está disposto a dar o preço que
ele vale.
-- Não questiono sobre o preço; compro-lhe o cavalo ar-
reado como está.
O sujeito olhou-me admirado; porque, a falar a verdade,
os seus arreios nada valiam.
Quanto a mim, já lhe tinha tomado as rédeas da mão; e,
sentado no selim, esperava que me dissesse quanto tinha de
pagar-lhe.
-- Não repare, fiz uma aposta e preciso de um cavalo
para ganhá-la.
Isto deu-lhe a compreender a singularidade do meu ato
e a pressa que eu tinha; recebeu sorrindo o preço do seu ani-
mal e disse, saudando-me com a mão, de longe, porque já eu
dobrava a rua:
-- Estimo que ganhe a aposta; o animal é excelente!
Na verdade era uma aposta que eu tinha feito comigo
mesmo, ou antes com a minha razão, a qual me dizia que era im-
possível apanhar a barca, e que eu fazia uma extravagância
sem necessidade, pois bastava ter paciência por vinte e quatro
horas.
Mas o amor não compreende esses cálculos e esses racio -
cínios próprios da fraqueza humana; criado com uma partícula
do fogo divino, ele eleva o homem acima da terra, desprende-o
da argila que o envolve e dá-lhe força para dominar todos os
obstáculos, para querer o impossível.
Esperar tranqüilamente um dia para dizer-lhe que eu a
amava e queria amá-la com todo o culto e admiração que me
inspirava a sua nobre abnegação, me parecia quase uma in-
fâmia.
Seria dizer-lhe que tinha refletido friamente, que tinha
pesado todos os prós e os contras do passo que ia dar, que
havia calculado como um egoísta a felicidade que ela me ofe-
recia.
Não só a minha alma se revoltava contra esta idéia; mas
parecia-me que ela, com a sua extrema delicadeza de sentimen-
to, embora não se queixasse, sentiria ver-se o objeto de um
cálculo e o alvo de um projeto de futuro.
A minha viagem foi uma corrida louca, desvairada, deli-
rante. Novo Mazzeppa, passava por entre a cerração da ma-
nhã, que cobria os píncaros da serrania, como uma sombra
que fugia rápida e veloz.
Dir-se-ia que alguma rocha colocada em um dos cabeços
da montanha tinha-se despreendido de seu alvéolo secular e,
precipitando-se com todo o peso, rolava surdamente pelas en-
costas.
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