Revoltei-me.

 

-- Compreendo agora, disse eu em voz baixa e como fa-

 

lando a um amigo que estivesse a meu lado, compreendo por

 

que ela me foge, por que conserva esse mistério ; tudo isto

 

não passa de uma zombaria cruel, de uma comédia, em que

 

eu faço o papel de amante ridículo. Realmente é uma lem-

 

brança engenhosa! Lançar em um coração o germe de um

 

amor profundo ; alimentá-lo de tempos a tempos com uma

 

palavra, excitar a imaginação pelo mistério; e depois, quando

 

esse namorado de uma sombra, de um sonho, de uma ilusão,

 

passear pelo salão a sua figura triste e abatida, mostrá-lo a

 

suas amigas como uma vítima imolada aos seus caprichos e

 

escarnecer do louco! É espirituoso! O orgulho da mais vai-

 

dosa mulher deve ficar satisfeito!

 

Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo

 

o fel que tinha no coração, a Charton modulava com a sua

 

voz sentimental essa linda ária final da Traviata, interrompida

 

por ligeiros acessos de uma tosse seca.

 

Ela tinha curvado a cabeça e não sei se ouvia o que eu

 

lhe dizia ou o que a Charton cantava; de vez em quando as

 

suas espáduas se agitavam com um tremor convulsivo, que eu

 

tomei injustamente por um movimento de impaciência.

 

O espetáculo terminou, as pessoas do camarote saíram e

 

ela, levantando sobre o chapéu o capuz de seu manto, acompa-

 

nhou-as lentamente.

 

Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma coisa,

 

tornou a entrar no camarote e estendeu-me a mão.

 

-- Não saberá nunca o que me fez sofrer, disse-me com a

 

voz trêmula.

 

Não pude ver-lhe o rosto; fugiu, deixando-me o seu lenço

 

impregnado desse mesmo perfume de sândalo e todo molhado

 

de lágrimas ainda quentes.

 

Quis segui-la; mas ela fez um gesto tão suplicante que não

 

tive ânimo de desobedecer-lhe.

 

Estava como dantes; não a conhecia, não sabia nada a

 

seu respeito; porém ao menos possuía alguma coisa dela; o seu

 

lenço era para mim uma relíquia sagrada.

 

Mas as lágrimas? Aquele sofrimento de que ela falava?

 

O que queria dizer tudo isto?

 

Não compreendia; se eu tinha sido injusto, era uma razão

 

para não continuar a esconder-se de mim. Que queria dizer

 

este mistério, que parecia obrigada a conservar?

 

Todas estas perguntas e as conjeturas a que elas davam

 

lugar não me deixaram dormir.

 

Passei uma noite de vigília a fazer suposições, cada qual

 

mais desarrazoada.

 

III

 

RECOLHENDO-ME no dia seguinte, achei em casa uma

 

carta.

 

Antes de abri-la conheci que era dela, porque lhe tinha

 

imprimido esse suave perfume que a cercava como uma au-

 

réola.

 

Eis o que dizia :

 

"Julga mal de mim, meu amigo ; nenhuma mulher pode

 

escarnecer de um nobre coração como o seu.

 

"Se me oculto, se fujo, é porque há uma fatalidade que a

 

isto me obriga. E só Deus sabe quanto me custa este sacrifí-

 

cio, porque o amo!

 

"Mas não devo ser egoísta e trocar sua felicidade por um

 

amor desgraçado.

 

"Esqueça-me.

 

Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apesar da deli-

 

cadeza de sentimento que parecia ter ditado suas palavras, o

 

que para mim se tornava bem claro é que ela continuava a

 

fugir-me.

 

Essa assinatura era a mesma letra que marcava o seu

 

lenço e à qual eu, desde a véspera, pedia debalde um nome!

 

Fosse qual fosse esse motivo que ela chamava uma fatali-

 

dade e que eu supunha ser apenas escrúpulo, senão uma zom-

 

baria, o melhor era aceitar o seu conselho e fazer por esquecê-la.

 

Refleti então friamente sobre a extravagância da minha

 

paixão e assentei que com efeito precisava tomar uma resolu-

 

ção decidida.

 

Não era possível que continuasse a correr atrás de um

 

fantasma que se esvaecia quando ia tocá-lo.

 

Aos grandes males os grandes remédios, como diz Hipó-

 

crates. Resolvi fazer uma viagem.

 

Mandei selar o meu cavalo, meti alguma roupa em um

 

saco de viagem, embrulhei-me no meu capote e saí, sem me

 

importar com a manhã de chuva que fazia.

 

Não sabia para onde iria. O meu cavalo levou-me para o

 

Engenho-Velho e eu daí me encaminhei para a Tijuca, onde

 

cheguei ao meio-dia, todo molhado e fatigado pelos maus ca-

 

minhos.

 

Se algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe

 

as viagens como um remédio soberano e talvez o único eficaz.

 

Deram-me um excelente almoço no hotel; fumei um cha-

 

ruto e dormi doze horas, sem ter um sonho, sem mudar de

 

lugar.