Tive vontade de fazer qualquer coisa ou ocasionar um cataclismo que nos distraísse.
Dom Pedro cantarolava. Um instante de angústia passou por todos, menos pelo forasteiro, que decididamente não havia entendido, nem mostrava sequer sentir o frio de nosso silêncio.
— Um barroso grandote — repetiu o borracho —, um barroso grandote. Ahã! Inda que seja barbado e ande em duas patas, como cristão... Em São Pedro contam que há muitos destes bichos; por isso diz o refrão:
"São-pedrino,
O que não é mulato é chino".
Duas vezes ouvimos repetir-se o dichote por uma voz cada vez mais pastosa e provocante.
Dom Segundo levantou o rosto e, como se recém percebesse de que a ele se dirigiam os ditos do índio Burgos, comentou tranquilo:
— Veja, amigo... vou ter de pensar que me está provocando.
Tão insólita exclamação, acompanhada de um gesto de surpresa, fez-nos sorrir apesar do mau jeito que tomava o diálogo. O borracho mesmo sentiu-se um tanto desconcertado, mas retomou pé dizendo:
— Ahã! Pensei que estava falando com surdos.
— E hão de ser surdos uns bagres com tanta orelha! O que sou é homem muito ocupado e por isso não lhe posso atender agora. Quando quiser pelear comigo, avise-me ao menos três dias antes.
Não pudemos conter o riso, mau grado o assombro que nos causava essa tranquilidade beirando a inconsciência. De súbito o forasteiro voltou a crescer na minha imaginação. Era o "brasa-apagada", o mistério, o homem de poucas palavras, que inspira nos pampas uma admiração interrogante.
O índio Burgos pagou suas canhas, murmurando ameaças.
Atrás dele, corri até a porta, notando que ficava acaçapado entre as sombras. Dom Segundo preparou-se por sua vez para sair e despediu-se de Dom Pedro, cuja palidez delatava suas apreensões.
Temendo que o brigão assassinasse aquele homem já senhor de toda a minha simpatia, fiz como se falasse ao pulpeiro, mas para advertir Dom Segundo: — Cuide-se.
Então me sentei no umbral, esperando, com o coração que me saía pela boca, o fim da inevitável peleia.
Dom Segundo deteve-se um momento na porta, olhando para os lados. Compreendi que estava habituando os olhos à escuridão, a fim de não ser surpreendido. Depois dirigiu-se para o cavalo, caminhando rente à parede.
O índio Burgos saiu da sombra e, pensando segurar seu homem, deu-lhe uma punhalada firme, de atravessar o coração. Vi a lâmina cortar a noite como um fogonaço.
Dom Segundo, com rapidez incrível, tirou o corpo fora e o facão se quebrou contra os tijolos do muro, num tilintar de cincerro.
O índio Burgos deu para trás dois passos e esperou de frente o encontrão decisivo.
No punho de Dom Segundo reluzia a folha triangular de uma pequena faca, mas o ataque esperado não se produziu. Dom Segundo, cuja serenidade não se alterara, abaixou-se, recolheu os pedaços de aço quebrados e, com sua voz irônica, disse: — Tome, amigo, e mande-a compor, que assim talvez não lhe sirva nem pra carnear borregos.
Como o agressor guardasse distância, Dom Segundo embainhou sua faquinha e, estendendo a mão, voltou a oferecer os pedaços do facão: — Agarre, amigo!
Dominado, o valentão chegou-se cabisbaixo e, no punho liso e entorpecido, o cabo da arma, inofensiva como uma cruz rota.
Dom Segundo encolheu os ombros e foi-se para seu redomão. O índio seguiu-o.
Já montado, ia indo o forasteiro pela noite; o bêbado aproximou-se, parecendo enfim haver recuperado o dom da palavra: — Ouça, paisano — disse, levantando o rosto escuro em que só os olhos viviam.
— Vou mandar compor este facão para quando precisar de mim.
Em seu pensar de briguento não lhe ocorria outra coisa como gesto de gratidão, do que oferecer assim sua vida pelo outro.
— Agora me dê a mão.
— Como não! — concedeu Dom Segundo, com a mesma tranquilidade com que aceitara o desafio. — Aí tem, amigo.
E sem mais cerimônia se foi pela estrada, deixando ali o homem que parecia lutar com uma ideia demasiado grande e clara para ele.
Ao lado de Dom Segundo, que mantinha seu redomão ao tranco, ia eu caminhando a largos passos.
— Conhece esse moço? — perguntou-me cruzando o poncho com amplo gesto de folga.
— Sim, senhor. Conheço e muito.
— Parece meio boboca, não?
III
Em frente de casa, a caminho da pousada onde ia comer, Dom Segundo separou-se de mim, dando-me a mão. Adivinhei que o gesto era devido à minha advertência de que se cuidasse ao sair de La Blanqueada, e senti um grande orgulho.
Entrei sem pressa. Como tinha previsto, minhas tias pregaram um sério sermão, tratando-me de perdido e condenando-me essa noite a não comer.
Olhei-as como se olham guascas velhas que já se deixam de usar. Tia Mercedes, seca, angulosa, cujo nariz em bico de carancho assomava brutalmente entre os olhos encovados, foi a que me privou de comida. Tia Assunção, pançuda, peituda e voraz em todo prazer, foi quem me insultou com mais vontade. Eu mandei-as aonde devia e encerrei-me no meu quarto, a pensar na minha vida futura e nos episódios da tarde. Parecia-me que minha existência estava ligada à de Dom Segundo e, embora me repetisse as centenas de empecilhos para segui-lo, mantinha a secreta esperança de que tudo se arranjaria. Como?
Primeiro imaginei Dom Segundo embaraçado em outra dificuldade e eu pela segunda vez advertindo-o do perigo. Isso sucedia em três, quatro distintas ocasiões, até que o homem me aceitava como amuleto. Depois era porque descobríamos algum parentesco, e ele se fazia meu protetor.
Enfim, porque me tomava afeição, permitindo-me viver a seu lado, meio peãozito, meio filho do desamparo. De repente encontrei uma solução imediata. Dom Segundo não ia até a estância dos Galván? Pois bem: eu iria antes. Chegado a esta altura de minhas meditações, não pensei mais, porque a solução me satisfazia e porque pensar até a fadiga não dá resultado prático.
— Me vou, me vou — dizia quase em voz alta.
Sentado na cama, às escuras, para que me imaginassem dormindo, esperei o momento propício para a fuga. Pela casa sonolenta arrastavam-se os últimos ruídos, que me falavam da estupidez das miudezas quotidianas.
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