Já não podia suportar aquelas coisas, e um arroubo de ódio fez-me olhar em redor as desmanteladas paredes do meu quartinho, como se deve olhar sem piedade o inimigo vencido. Oh! Certamente não sentiria falta de nada do que deixava, pois as rédeas e o buçalzinho, que eu adivinhava enrolados no prego que os suspendiam de encontro à tábua da porta, viriam comigo!

Aquelas paredes que haviam testemunhado impassíveis minhas primeiras lágrimas, meus aborrecimentos e meus protestos ficariam bem sós.

Tateando, tirei de baixo da cama um par de botas pequenas e sovadas. Junto delas coloquei rédeas e bucal. Enrolei tudo no meu querido poncho, presente de Dom Fábio, com umas escassas peças de roupa. Ter posto mãos à obra aumentou-me a coragem, e deslizei cuidadosamente até o fundo do curral, deixando entreaberta a porta. A imensidão da noite infligiu-me temor, como se ela se houvesse apossado de meu segredo. Cautelosamente caminhei até o telheiro. Sargento, o cão, fez-me algumas festas. Subi por uma escada manual até o vasto desvão, onde os ratos corriam entre alguns sacos de milho e trastes velhos.

Era difícil encontrar as espalhadas peças de meus arreios; mas por sorte tinha no bolso uma caixa de fósforo. À luz incerta da pequena chama, pude ajuntar xergas, carona, bastos, pelego, badana e sobrecincha. Ajustado o todo com a cincha, joguei a trouxa ao ombro, voltando ao quarto, onde reuni meus novos bens ao poncho, botas e rédeas. E, como não tinha mais que levar, deitei-me entre aquelas coisas de minha propriedade, deixando vazia a cama, com o que rompia, a meu ver, com todos os laços alheios.

De noite ainda, despertei, o lado direito dolorido por me haver apoiado sobre o freio, o traseiro esfriado pelos ladrilhos, a nuca um tanto torcida devido a uma incômoda posição. Que horas poderiam ser? De qualquer modo era prudente estar preparado para prever qualquer eventualidade.

Como um mascate, joguei às costas aperos e roupa. Meio dormindo, cheguei ao curral, pus o freio em meu petiço, encilhei-o e, abrindo a porteira dos fundos, ganhei a rua.

Experimentava uma satisfação desconhecida, a satisfação de me sentir livre.

O pueblo dormia ainda a sono solto e dirigi meu petiço ao tranco, singularmente sonoro, até a cocheira do Torres, onde ia pedir que me entregassem o outro petiço, ali estabulado por conta de Festal.

Um galo cantou; alvorecia imperceptivelmente.

Como o pessoal da cocheira começava a acordar cedo, a fim de se preparar para o trem da madrugada, encontrei o portão aberto e Remígio, um rapazote de meus amigos, entre a cavalhada.

— Que ventos te trazem? — foi sua primeira pergunta.

— Bom-dia, irmão. Venho buscar meu parelheiro. Um tempão tive que discutir com aquele basbaque, a fim de provar-lhe que eu era livre de dispor do que era meu. Por fim, deu-se por vencido.

— Está aí o petiço. Faz o que te der na veneta. Sem deixar Remígio repetir o que dizia, botei o bucal no petiço, por certo mais bem cuidado do que o que ficara em minhas mãos, despedi-me com cavalo a cabresto e roupa no poncho, como um autêntico gaúcho, e saí do pueblo rumo ao campo, cruzando a ponte velha.

Para ir à estância dos Galván, tinha de tomar a mesma direção da de Dom Fábio. A certa altura um caminho quebrava para o norte e por ele eu devia seguir até uns matos, que de longe já conhecia.

Apressado por deixar o pueblo, pus-me a galopar. O petiço que levava de tiro cabresteava muito bem.

Depois de andar como duas léguas, dei um descanso aos animais, enquanto o sol saía sobre minha nova existência.

Sentia-me tomado por um contentamento indescritível. Uma luz fresca salpicava de ouro o campo. Meus petiços pareciam esmaltados de uma cor nova. Em redor, as pastagens renasciam em silêncio, cintilantes de rocio; e me ri de imenso contentamento, ri de liberdade, enquanto meus olhos se enchiam de cristais, como se também eles se renovassem no sereno matinal.

Uma légua faltava para chegar ao casario, e a fiz ao tranco, ouvindo os primeiros cantos do dia, banhando-me de otimismo naquela madrugada que parecia criar o pampa vencendo a noite.

Receoso diante das casas, enveredei para o galpão. Parecia deserto. Os cães, que rosnavam roçando os garrões de meu petiço, não eram lá um convite amável para pôr pé em terra. Por fim apareceu um velho na porta da cozinha, gritou "fora!" à cachorrada, convidou-me a que me chegasse, e apontou um dos tantos bancos da peça, para que me sentasse.

Toda a manhã passei naquele canto espiando os movimentos do velho, como se deles dependesse meu futuro. Não trocamos palavra.

Ao meio-dia começaram a chegar alguns peões e badalou um sino chamando para a comida. O pessoal cumprimentava ao entrar e alguns olhavam-me de soslaio.

Acompanhado de quatro ou cinco homens, entrou Goyo López, que eu conhecia do pueblo.

— Andas passeando? — perguntou-me.

— À procura de trabalho.

— Trabalho? — repetiu cravando-me os olhos.

Por um momento tremi, pensando que ia revelar alguma coisa de minha família no pueblo; mas Goyo era homem discreto. Os peões observavam-me.