Um rapazote disse, comentando minha resposta: — Virá conchavar-se para carregar sacos.

Goyo voltou-se para ele: — Sim, toca-lhe o chuço agora, enquanto está meio assustado, porque, logo que tome confiança, talvez até contigo carregue. Não sabes que cria é esta.

Um momento fui o alvo de quarenta olhos. Não pestanejei sequer, esperando que passasse aquela atenção.

Não obstante, as palavras de Goyo tinham produzido seu efeito. Ser esperto, inda que passando os limites da boa conduta, é um mérito que o homem do campo aprecia.

Goyo chamou-me da porta para dizer-me que desenfreasse meu petiço, que me ensinaria onde era o bebedouro, para que levasse o animal a beber um pouco. Isto não passava de expediente para falar-me a sós. Mal nos encontramos fora, disse-me: — Fugiste do povo.

— Não digas nada, irmão; olha que me comprometes.

— Te comprometo? Que figura... e vais trabalhar?

— E por que não?

— Bueno... Dá água ao petiço... Olha, ali vem o capataz.

Esperamos que um inglês acrioulado chegasse até nós e, depois do cumprimento, fiz meu pedido.

— Não tenho trabalho pra dar — disse, apeando do cavalo.

— Então, me dá licença pra comer? Em seguidinha me vou.

— Pra donde vais ir?

— Pra lá — respondi estendendo a mão ao azar.

O inglês olhou-me com um sorriso bonachão.

— E és bem mandado?

— Sou, sim senhor.

— Conhece ele, Dom Goyo?

— Um pouco, Dom Jeremias.

— Muito bem. Depois da sesta dê-lhe o petiço Sapo. Que atrele na carrocinha de varal e vá tirando essa palha das manjedouras do galpão e lançando nos sangões lá da porteira branca.

— Sim, senhor.

Para ganhar as boas graças do capataz, cheguei-me ao seu cavalo, desencilhei-o, dando volta às xergas para que se arejassem, e perguntei a Goyo onde devia soltá-lo.

— Naquele potreirinho onde está a cevada.

— Com bucal ou sem bucal? — perguntei a Goyo.

— Sem bucal.

Não posso dizer a minha alegria quando na mesa, já flanqueada por vinte homens, tomei lugar entre Goyo e um gringote velho, que tratava da quinta.

— Cozinheiro — disse Goyo —, passe-lhe um prato e uma colher ao novo mensalista.

— Novo mensalista? — riu o rapaz que pela manhã caçoara do meu pedido de trabalho. — Será para carregar esterco?

Percebi que tais palavras, que de outro poderiam ser maldade, não passavam de estupidez e aproveitei a ocasião para não desmentir a Goyo, que me recomendara como sabido, quando tomasse confiança.

— Pra carregar esterco? — repeti. — Toma cuidado, não vá que um dia também amanheças atirado nos sangões.

E, como ouvi rirem, lembrei-me de meus dias de popularidade no pueblo.

— Te estão aproveitando mal — continuei, olhando o cabelo nodoso e enredado do meu interlocutor —, se eu fosse o patrão te mandaria cortar a melena pra encher peiteras.

Uma risota geral acolheu meu discurso. Quando silenciaram, um homem dos mais velhos arguiu-me com dignidade: — Boas saídas me parece que não te faltam, mas é bom não querer voar antes de criar bem as asas. Ainda és muito filhote para latir como cachorro grande.

Uma olhadela teria bastado para saber quem me falava, mas dessa vez baixei a cabeça, dizendo mansamente, como convém quando se fala a um superior: — Não creia, senhor; também sei respeitar.

— Assim deve ser — concluiu o velho; e, após uma breve pausa, voltou a circular a brincadeira de ponta a ponta na mesa.

Toda essa tarde passei carregando palha das manjedouras do galpão para os sangões, por um trecho de umas dez quadras. Quando eu chegava ao galpão, o galponeiro enchia a carrocinha, deixando cravado na carga o forcado. Nas sangas eu esgrimia o instrumento, que depois voltava matraqueando de modo ensurdecedor sobre o tablado vazio.

A hora da comida achou-me um tanto dormido; mas o cansaço, que me expunha a algum trote, passou despercebido no silêncio geral.

No quarto de Goyo acomodaram-me um catre. Não tinha eu colchão, nem roupa alguma para arrumar a cama pouco amável, mas, sendo a fadiga o melhor dos colchões, atirei-me, envolvido no poncho, sobre a lona desnuda e áspera, sem cuidar de luxos. Por um pouco pensei na minha fuga, evoquei a casa das minhas tias, suas figuras, minhas rezas. O sono caiu sobre mim como um montão de feno sobre um tico-tico.




IV



Horácio despertou-me bruscamente, sacudindo-me pelos ombros.

Meu primeiro pensamento foi para o dia anterior: minha fuga, o êxito da minha treta a fim de preceder a Dom Segundo na estância dos Galván, a recepção de Goyo e a apresentação que fez de mim à peonada como novo mensalista, o incidente da mesa.

Alvorecia e já pela pequena janela vi orvalharem-se de matizes dourados as nuvens do nascente, compridas e finas como pétalas de girassol.

Baixei os pés do catre, levantei-me com esforço sobre as pernas moles como queijo, ajustei minha faixa, esfreguei os olhos, cujas pálpebras sentia mais pesadas que se lhe houvessem picado mangangás, e encaminhei-me, arrastando as alpargatas, para a cozinha. Sentia frio e o corpo moído de cansaço.

Em torno do fogo quase apagado, acabava de matear a peonada, e emendei três amargos, que me despertaram um tanto.

— Vamos — disse alguém e, como se não tivéssemos esperado senão aquela voz, espalhamo-nos da porta para rumos diferentes.

O primeiro raio de sol encontrou-me varrendo o curral das ovelhas com uma grande folha de coqueiro. Não era lá muito honroso, na verdade, isso de fazer rolarem as bosticas por sobre os tijolos e juntar alguns chumaços de lã sarnosa; não obstante, eu estava tão contente como a manhãzinha. Fazia meu trabalho com esmero, dizendo-me a mim mesmo que por ele eu era igual aos homens feitos. O frescor acelerava-me os movimentos. No céu desfaziam-se os matizes, derrubados pela luz do dia.

Às oito chamaram-nos para comer e, enquanto a dente despedaçava um pedaço de churrasco, espiei meus companheiros, em cujos rostos procurava tudo adivinhar.

O domador, Valério Lares, era um índio forçudo, calado e risonho; eu teria desejado fazer-me seu amigo, mas não queria ser intrometido. Ademais, ninguém falava, porque o escasso tempo de que dispúnhamos queríamos cada um aproveitá-lo de modo mais útil.

Acabada a comida, o cozinheiro disse-me que ficasse para ajudá-lo, e foram saindo todos até deixar vazia a grande peça, cuja importância parecia resumir-se ao fogão, sob cuja chaminé tomou lugar a panela, rodeada de chaleiras, como avestruz por seus filhotes.

O cozinheiro não esteve mais loquaz que no dia de minha chegada e passei a manhã servindo-lhe de ajudante, os olhos constantemente atraídos pela silenciosa silhueta do domador, que, junto da porta, cosia uma rédea de couro cru.

Devia estar já perto de meio-dia, quando ouvimos Limas esporas rascando sobre os ladrilhos de fora. A voz de Valério saudou alguém, convidando a que entrasse para tomar uns mates. Por curioso, me acheguei, vendo Dom Segundo Sombra em pessoa.

— Passeando? — perguntou Valério.

— Não, senhor. Me disseram que aqui havia umas éguas pra domar e que o senhor estava muito ocupado.

— Não quer entrar pra cozinha?

— Bueno.

Os dois homens chegaram-se ao fogo. Dom Segundo deu os bons-dias sem parecer reconhecer-me.