A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos!
É então que a vaga dos instintos presos
– Mãe de esterilidades e cansaços –
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.
Subitamente a cerebral coreia
Para. O cosmos sintético da Ideia
Surge. Emoções extraordinárias sinto...
Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!
O POETA DO HEDIONDO
Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!
Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência,
A ultrainquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!
Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente, eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...
Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
A FOME E O AMOR
A um monstro
Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbanjem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!
Amor! E a satiríase sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!
Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os dois
Representam, no ardor dos seus assomos,
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que inda hoje sois!
HOMO INFIMUS
Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!
O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!
Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular,
Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: – o de chorar!
MINHA FINALIDADE
Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!
Predeterminação imprescritível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!
Na canonização emocionante
Da dor humana, sou maior que Dante,
– A águia dos latifúndios florentinos!
Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno,
A fórmula de todos os destinos!
NUMA FORJA
De inexplicáveis ânsias prisioneiro
Hoje entrei numa forja, ao meio-dia.
Trinta e seis graus à sombra. O éter possuía
A térmica violência de um braseiro.
Dentro, a cuspir escórias
De fúlgida limalha
Dardejando centelhas transitórias,
No horror da metalúrgica batalha
O ferro chiava e ria!
Ria, num sardonismo doloroso
De ingênita amargura,
Da qual, bruta, provinha
Como de um negro cáspio de água impura
A multissecular desesperança
De sua espécie abjeta
Condenada a uma estática mesquinha!
Ria com essa metálica tristeza
De ser na Natureza,
Onde a Matéria avança
E a Substância caminha
Aceleradamente para o gozo
Da integração completa,
Uma consciência eternamente obscura!
O ferro continuava a chiar e a rir.
E eu nervoso, irritado,
Quase com febre, a ouvir
Cada átomo de ferro
Contra a incude esmagado
Sofrer, berrar, tinir,
Compreendia por fim que aquele berro
À substância inorgânica arrancado
Era a dor do minério castigado
Na impossibilidade de reagir!
Era um cosmos inteiro sofredor,
Cujo negror profundo
Astro nenhum exorna
Gritando na bigorna
Asperamente a sua própria dor!
Era, erguido do pó,
Inopinadamente
Para que à vida quente
Da sinergia cósmica desperte,
A ansiedade de um mundo
Doente de ser inerte,
Cansado de estar só!
Era a revelação
De tudo que ainda dorme
No metal bruto ou na geleia informe
Do parto primitivo da Criação!
Era o ruído-clarão,
– O ígneo jato vulcânico
Que, atravessando a absconsa cripta enorme
De minha cavernosa subconsciência,
Punha em clarividência
Intramoleculares sóis acesos
Perpetuamente às mesmas formas presos,
Agarrados à inércia do Inorgânico
Escravos da Coesão!
Repuxavam-me a boca hórridos trismos
E eu sentia, afinal,
Essa angústia alarmante
Própria de alienação raciocinante,
Cheia de ânsias e medos
Com crispações nos dedos
Piores que os paroxismos
Da árvore que a atmosfera ultriz destronca.
A ouvir todo esse cosmos potencial,
Preso aos mineralógicos abismos
Angustiado e arquejante
A debater-se na estreiteza bronca
De um bloco de metal!
Como que a forja tétrica
Num estridor de estrago
Executava, em lúgubre crescendo
A antífona assimétrica
E o incompreensível wagnerismo aziago
De seu destino horrendo!
Ao clangor de tais carmes de martírio
Em cismas negras eu recaio imerso
Buscando no delírio
De uma imaginação convulsionada
Mais revolta talvez de que a onda atlântica,
Compreender a semântica
Dessa aleluia bárbara gritada
Às margens glacialíssimas do Nada
Pelas coisas mais brutas do Universo!
NOLI ME TANGERE
A exaltação emocional do Gozo,
O Amor, a Glória, a Ciência, a Arte e a Beleza
Servem de combustíveis à ira acesa
Das tempestades do meu ser nervoso!
Eu sou, por consequência, um ser monstruoso!
Em minha arca encefálica indefesa
Choram as forças más da Natureza
Sem possibilidades de repouso!
Agregados anômalos malditos
Despedaçam-se, mordem-se, dão gritos
Nas minhas camas cerebrais funéreas...
Ai! Não toqueis em minhas faces verdes,
Sob pena, homens felizes, de sofrerdes
A sensação de todas as misérias!
O CANTO DOS PRESOS
Troa, a alardear bárbaros sons abstrusos,
O epitalâmio da Suprema Falta,
Entoado asperamente, em voz muito alta,
Pela promiscuidade dos reclusos!
No wagnerismo desses sons confusos,
Em que o Mal se engrandece e o Ódio se exalta,
Uiva, à luz de fantástica ribalta,
A ignomínia de todos os abusos!
É a prosódia do cárcere, é a partênia
Aterradoramente heterogênea
Dos grandes transviamentos subjetivos...
É a saudade dos erros satisfeitos,
Que, não cabendo mais dentro dos peitos,
Se escapa pela boca dos cativos!
ABERRAÇÃO
Na velhice automática e na infância,
(Hoje, ontem, amanhã e em qualquer era)
Minha hibridez é a súmula sincera
Das defectividades da Substância.
Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia,
Como Belerofonte com a Quimera
Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera
E acho odor de cadáver na fragrância!
Chamo-me Aberração. Minha alma é um misto
De anomalias lúgubres. Existo
Como o cancro, a exigir que os sãos enfermem...
Teço a infâmia; urdo o crime; engendro o lodo
E nas mudanças do Universo todo
Deixo inscrita a memória do meu gérmen!
VÍTIMA DO DUALISMO
Ser miserável entre os miseráveis
– Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiossincrasias!
Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!
Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo...
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,
Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!
AO LUAR
Quando, à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!
Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!
Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...
Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!
A UM EPILÉPTICO
Perguntarás quem sou?! – ao suor que te unta,
À dor que os queixos te arrebenta, aos trismos
Da epilepsia horrenda, e nos abismos
Ninguém responderá tua pergunta!
Reclamada por negros magnetismos
Tua cabeça há de cair, defunta
Na aterradora operação conjunta
Da tarefa animal dos organismos!
Mas após o antropófago alambique
Em que é mister todo o teu corpo fique
Reduzido a excreções de sânie e lodo,
Como a luz que arde, virgem, num monturo,
Tu hás de entrar completamente puro
Para a circulação do Grande Todo!
CANTO DE ONIPOTÊNCIA
Cloto, Átropos, Tifon, Laquesis, Siva...
E acima deles, como um astro, a arder,
Na hiperculminação definitiva
O meu supremo e extraordinário Ser!
Em minha sobre-humana retentiva
Brilhavam, como a luz do amanhecer,
A perfeição virtual tornada viva
E o embrião do que podia acontecer!
Por antecipação divinatória,
Eu, projetado muito além da História,
Sentia dos fenômenos o fim...
A coisa em si movia-se aos meus brados
E os acontecimentos subjugados
Olhavam como escravos para mim!
MINHA ÁRVORE
Olha: É um triângulo estéril de ínvia estrada!
Como que a erva tem dor... Roem-na amarguras
Talvez humanas, e entre rochas duras
Mostra ao Cosmos a face degradada!
Entre os pedrouços maus dessa morada
É que, às apalpadelas e às escuras,
Hão de encontrar as gerações futuras
Só, minha árvore humana desfolhada!
Mulher nenhuma afagará meu tronco!
Eu não me abalarei, nem mesmo ao ronco
Do furacão que, rábido, remoinha...
Folhas e frutos, sobre a terra ardente
Hão de encher outras árvores! Somente
Minha desgraça há de ficar sozinha!
ANSEIO
Quem sou eu, neste ergástulo das vidas
Danadamente, a soluçar de dor?!
– Trinta trilhões de células vencidas,
Nutrindo uma efeméride inferior.
Branda, entanto, a afagar tantas feridas,
A áurea mão taumatúrgica do Amor
Traça, nas minhas formas carcomidas,
A estrutura de um mundo superior!
Alta noite, esse mundo incoerente,
Essa elementaríssima semente
Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal...
Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto,
E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto
Não poder dar-lhe vida material!
À MESA
Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensanguentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!
Como porções de carne morta... Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!...
Como! E pois que a Razão me não reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também!
MÃOS
Há mãos que fazem medo
Feias agregações pentagonais,
Umas, em sangue, a delinquentes natos,
Assinalados pelo mancinismo,
Pertencentes talvez...
Outras, negras, a farpas de rochedo
Completamente iguais...
Mãos de linhas análogas a anfratos
Que a Natureza onicriadora fez
Em contraposição e antagonismo
Às da estrela, às da neve, às dos cristais.
Mãos que adquiriram olhos, pituitárias
Olfativas, tentáculos sutis
E à noite, vão cheirar, quebrando portas,
O azul gasofiláceo silencioso
Dos tálamos cristãos.
Mãos adúlteras, mãos mais sanguinárias
E estupradoras do que os bisturis
Cortando a carne em flor das crianças mortas.
Monstruosíssimas mãos,
Que apalpam e olham com lascívia e gozo
A pureza dos corpos infantis.
REVELAÇÃO
I
Escafandrista de insondado oceano
Sou eu que, aliando Buda ao sibarita,
Penetro a essência plásmica infinita,
– Mãe promíscua do amor e do ódio insano!
Sou eu que, hirto, auscultando o absconso arcano,
Por um poder de acústica esquisita,
Ouço o universo ansioso que se agita
Dentro de cada pensamento humano!
No abstrato abismo equóreo, em que me inundo,
Sou eu que, revolvendo o ego profundo
E a escuridão dos cérebros medonhos,
Restituo triunfalmente à esfera calma
Todos os cosmos que circulam na alma
Sob a forma embriológica de sonhos!
I
Treva e fulguração; sânie e perfume;
Massa palpável e éter; desconforto
E ataraxia; feto vivo e aborto...
– Tudo a unidade do meu ser resume!
Sou eu que, ateando da alma o ocíduo lume,
Apreendo, em cisma abismadora absorto,
A potencialidade do que é morto
E a eficácia prolífica do estrume!
Ah! Sou eu que, transpondo a escarpa angusta
Dos limites orgânicos estreitos,
Dentro dos quais recalco em vão minha ânsia,
Sinto bater na putrescível crusta
Do tegumento que me cobre os peitos
Toda a imortalidade da Substância!
VERSOS A UM COVEIRO
Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
– Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais
Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!
TREVAS
Haverá, por hipótese, nas geenas
Luz bastante fulmínea que transforme
Dentro da noite cavernosa e enorme
Minhas trevas anímicas serenas?!
Raio horrendo haverá que as rasgue apenas?!
Não! Porque, na abismal substância informe,
Para convulsionar a alma que dorme
Todas as tempestades são pequenas!
Há de a Terra vibrar na ardência infinda
Do éter em branca luz transubstanciado,
Rotos os nimbos maus que a obstruem a esmo...
A própria Esfinge há de falar-vos ainda
E eu, somente eu, hei de ficar trancado
Na noite aterradora de mim mesmo!
AS MONTANHAS
I
Das nebulosas em que te emaranhas
Levanta-te, alma, e dize-me, afinal,
Qual é, na natureza espiritual,
A significação dessas montanhas!
Quem não vê nas graníticas entranhas
A subjetividade ascensional
Paralisada e estrangulada, mal
Quis erguer-se a cumíadas tamanhas?!
Ah! Nesse anelo trágico de altura
Não serão as montanhas, porventura,
Estacionadas, íngremes, assim,
Por um abortamento de mecânica,
A representação ainda inorgânica
De tudo aquilo que parou em mim?!
II
Agora, oh! deslumbrada alma, perscruta
O puerpério geológico interior,
De onde rebenta, em contrações de dor,
Toda a sublevação da crusta hirsuta!
No curso inquieto da terráquea luta
Quantos desejos férvidos de amor
Não dormem, recalcados, sob o horror
Dessas agregações de pedra bruta?!
Como nesses relevos orográficos,
Inacessíveis aos humanos tráficos
Onde sóis, em semente, amam jazer,
Quem sabe, alma, se o que ainda não existe
Não vibra em gérmen no agregado triste
Da síntese sombria do meu Ser?!
APOCALIPSE
Minha divinatória Arte ultrapassa
Os séculos efêmeros e nota
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa.
É a subversão universal que ameaça
A Natureza, e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça!
São despedaçamentos, derrubadas,
Federações sidéricas quebradas...
E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante,
Espião da cataclísmica surpresa,
A única luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante!
A NAU
A Heitor Lima
Sôfrega, alçando o hirto esporão guerreiro,
Zarpa. A íngreme cordoalha úmida fica...
Lambe-lhe a quilha a espúmea onda impudica
E ébrios tritões, babando, haurem-lhe o cheiro!
Na glauca artéria equórea ou no estaleiro
Ergue a alta mastreação, que o Éter indica,
E estende os braços de madeira rica
Para as populações do mundo inteiro!
Aguarda-a a ampla reentrância de angra horrenda,
Para e, a amarra agarrada à âncora, sonha!
Mágoas, se as tem, subjugue-as ou disfarce-as...
E não haver uma alma que lhe entenda
A angústia transoceânica medonha
No rangido de todas as enxárcias!
VOLÚPIA IMORTAL
Cuidas que o genesíaco prazer,
Fome do átomo e eurítmico transporte
De todas as moléculas, aborte
Na hora em que a nossa carne apodrecer?!
Não! Essa luz radial, em que arde o Ser,
Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continua a arder!
Surdos destarte a apóstrofes e brados,
Os nossos esqueletos descarnados,
Em convulsivas contorções sensuais,
Haurindo o gás sulfídrico das covas,
Com essa volúpia das ossadas novas
Hão de ainda se apertar cada vez mais!
O FIM DAS COISAS
Pode o homem bruto, adstrito à ciência grave,
Arrancar, num triunfo surpreendente,
Das profundezas do Subconsciente
O milagre estupendo da aeronave!
Rasgue os broncos basaltos negros, cave,
Sôfrego, o solo sáxeo; e, na ânsia ardente
De perscrutar o íntimo do orbe, invente
A lâmpada aflogística de Davy!
Em vão! Contra o poder criador do Sonho
o Fim das Coisas mostra-se medonho
Como o desaguadouro atro de um rio...
E quando, ao cabo do último milênio,
A humanidade vai pesar seu gênio
Encontra o mundo, que ela encheu, vazio!
VIAGEM DE UM VENCIDO
Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio...
E, enquanto eu tropeçava sobre os paus,
A efígie apocalíptica do Caos
Dançava no meu cérebro sombrio!
O Céu estava horrivelmente preto
E as árvores magríssimas lembravam
Pontos de admiração que se admiravam
De ver passar ali meu esqueleto!
Sozinho, uivando hoffmânnicos dizeres,
Aprazia-me assim, na escuridão,
Mergulhar minha exótica visão
Na intimidade noumenal dos seres.
Eu procurava, com uma vela acesa,
O feto original, de onde decorrem
Todas essas moléculas que morrem
Nas transubstanciações da Natureza.
Mas o que meus sentidos apreendiam
Dentro da treva lúgubre, era só
O ocaso sistemático de pó,
Em que as formas humanas se sumiam!
Reboava, num ruidoso burburinho
Bruto, análogo ao peã de márcios brados,
A rebeldia dos meus pés danados
Nas pedras resignadas do caminho.
Sentia estar pisando com a planta ávida
Um povo de radículas e embriões
Prestes a rebentar, como vulcões,
Do ventre equatorial da terra grávida!
Dentro de mim, como num chão profundo,
Choravam, com soluços quase humanos,
Convulsionando Céus, almas e oceanos,
As formas microscópicas do mundo!
Era a larva agarrada a absconsas landes,
Era o abjeto vibrião rudimentar
Na impotência angustiosa de falar,
No desespero de não serem grandes!
Vinha-me à boca, assim, na ânsia dos párias,
Como o protesto de uma raça invicta,
O brado emocionante de vindicta
Das sensibilidades solitárias!
A longanimidade e o vilipêndio,
A abstinência e a luxúria, o bem e o mal
Ardiam no meu orco cerebral,
Numa crepitação própria de incêndio!
Em contraposição à paz funérea,
Doía profundamente no meu crânio
Esse funcionamento simultâneo
De todos os conflitos da matéria!
Eu, perdido no Cosmos, me tornara
A assembleia belígera malsã,
Onde Ormuzd guerreava com Arimã,
Na discórdia perpétua do sansara!
Já me fazia medo aquela viagem
A carregar pelas ladeiras tétricas,
Na óssea armação das vértebras simétricas
A angústia da biológica engrenagem!
No Céu, de onde se vê o Homem de rastros,
Brilhava, vingadora, a esclarecer
As manchas subjetivas do meu ser
A espionagem fatídica dos astros!
Sentinelas de espíritos e estradas,
Noite alta, com a sidérica lanterna,
Eles entravam todos na caverna
Das consciências humanas mais fechadas!
Ao castigo daquela rutilância,
Maior que o olhar que perseguiu Caim,
Cumpria-se afinal dentro de mim
O próprio sofrimento da Substância!
Como quem traz ao dorso muitas cargas
Eu sofria, ao colher simples gardênia,
A multiplicidade heterogênea
De sensações diversamente amargas.
Mas das árvores, frias como lousas,
Fluía, horrenda e monótona, uma voz
Tão grande, tão profunda, tão feroz
Que parecia vir da alma das cousas:
“Se todos os fenômenos complexos,
Desde a consciência à antítese dos sexos,
Vêm de um dínamo fluídico de gás,
Se hoje, obscuro, amanhã píncaros galgas,
A humildade botânica das algas
De que grandeza não será capaz?!
Quem sabe, enquanto Deus, Jeová ou Siva
Oculta à tua força cognitiva
Fenomenalidades que hão de vir,
Se a contração que hoje produz o choro
Não há de ser no século vindouro
Um simples movimento para rir?!
Que espécies outras, do Equador aos pólos,
Na prisão milenária dos subsolos,
Rasgando avidamente o húmus malsão,
Não trabalham, com a febre mais bravia,
Para erguer, na ânsia cósmica, a Energia
À última etapa da objetivação?!
É inútil, pois, que, a espiar enigmas, entres
Na química genésica dos ventres,
Porque em todas as coisas, afinal,
Crânio, ovário, montanha, árvore, iceberg,
Tragicamente, diante do Homem, se ergue
A esfinge do Mistério Universal!
A própria força em que teu Ser se expande,
Para esconder-se nessa esfinge grande,
Deu-te (oh! mistério que se não traduz!)
Neste astro ruim de tênebras e abrolhos
A efeméride orgânica dos olhos
E o simulacro atordoador da Luz!
Por isto, oh! filho dos terráqueos limos,
Nós, arvoredos desterrados, rimos
Das vãs diatribes com que aturdes o ar...
Rimos, isto é, choramos, porque, em suma,
Rir da desgraça que de ti ressuma
É quase a mesma coisa que chorar!”
Às vibrações daquele horrível carme
Meu dispêndio nervoso era tamanho
Que eu sentia no corpo um vácuo estranho
Como uma boca sôfrega a esvaziar-me!
Na avançada epiléptica dos medos
Cria ouvir, a escalar Céus e apogeus,
A voz cavernosíssima de Deus,
Reproduzida pelos arvoredos!
Agora, astro decrépito, em destroços,
Eu, desgraçadamente magro, a erguer-me,
Tinha necessidade de esconder-me
Longe da espécie humana, com os meus ossos!
Restava apenas na minha alma bruta
Onde frutificara outrora o Amor
Uma volicional fome interior
De renúncia budística absoluta!
Porque, naquela noite de ânsia e inferno,
Eu fora, alheio ao mundanário ruído,
A maior expressão do homem vencido
Diante da sombra do Mistério Eterno!
A NOITE
A nebulosidade ameaçadora
Tolda o éter, mancha a gleba, agride os rios
E urde amplas teias de carvões sombrios
No ar que álacre e radiante, há instantes, fora.
A água transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão do oceano e entre os navios
Troa bárbara zoada de ais bravios,
Extraordinariamente atordoadora.
À custódia do anímico registro
A planetária escuridão se anexa...
Somente, iguais a espiões que acordam cedo,
Ficam brilhando com fulgor sinistro
Dentro da treva onímoda e complexa
Os olhos fundos dos que estão com medo!
A OBSESSÃO DO SANGUE
Acordou, vendo sangue... Horrível! O osso
Frontal em fogo... Ia talvez morrer,
Disse. Olhou-se no espelho. Era tão moço,
Ah! Certamente não podia ser!
Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!
No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão...
E amou, com um berro bárbaro de gozo,
O monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!
VOX VICTIMAE
Morto! Consciência quieta haja o assassino
Que me acabou, dando-me ao corpo vão
Esta volúpia de ficar no chão
Fruindo na tabidez sabor divino!
Espiando o meu cadáver ressupino,
No mar da humana proliferação,
Outras cabeças aparecerão
Para compartilhar do meu destino!
Na festa genetlíaca do Nada,
Abraço-me com a terra atormentada
Em contubérnio convulsionador...
E ai! Como é boa esta volúpia obscura
Que une os ossos cansados da criatura
Ao corpo ubiquitário do Criador!
O ÚLTIMO NÚMERO
Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,
A Ideia estertorava-se... No fundo
Do meu entendimento moribundo
Jazia o Último Número cansado.
Era de vê-lo, imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora da sucessão, estranho ao mundo,
Como o reflexo fúnebre do Incriado:
Bradei: – Que fazes ainda no meu crânio?
E o Último Número, atro e subterrâneo,
Parecia dizer-me: “É tarde, amigo!
Pois que a minha autogênica Grandeza
Nunca vibrou em tua língua presa,
Não te abandono mais! Morro contigo!”
SAUDADE
Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.
À noite quando em funda soledade
Minh’alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.
E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,
Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.
ABANDONADA
Ao meu irmão Odilon dos Anjos
Bem depressa sumiu-se a vaporosa
Nuvem de amores, de ilusões tão bela;
O brilho se apagou daquela estrela
Que a vida lhe tornava venturosa!
Sombras que passam, sombras cor-de-rosa
– Todas se foram num festivo bando,
Fugazes sonhos, gárrulos voando
– Resta somente um’alma tristurosa!
Coitada! o gozo lhe fugiu correndo,
Hoje ela habita a erma soledade,
Em que vive e em que aos poucos vai morrendo!
Seu rosto triste, seu olhar magoado,
Fazem lembrar em noite de saudade
A luz mortiça de um olhar nublado.
CETICISMO
Desci um dia ao tenebroso abismo,
Onde a Dúvida ergueu altar profano;
Cansado de lutar no mundo insano,
Fraco que sou, volvi ao ceticismo.
Da Igreja – a Grande Mãe – o exorcismo
Terrível me feriu, e então sereno,
De joelhos aos pés do Nazareno
Baixo rezei, em fundo misticismo:
– Oh! Deus, eu creio em ti, mas me perdoa!
Se esta dúvida cruel qual me magoa
Me torna ínfimo, desgraçado réu.
Ah, entre o medo que o meu Ser aterra,
Não sei se viva pra morrer na terra,
Não sei se morra pra viver no Céu!
MÁGOAS
Quando nasci, num mês de tantas flores,
Todas murcharam, tristes, langorosas,
Tristes fanaram redolentes rosas,
Morreram todas, todas sem olores.
Mais tarde da existência nos verdores
Da infância nunca tive as venturosas
Alegrias que passam bonançosas,
Oh! Minha infância nunca teve flores!
Volvendo à quadra azul da mocidade,
Minh’alma levo aflita à Eternidade,
Quando a morte matar meus dissabores.
Cansado de chorar pelas estradas,
Exausto de pisar mágoas pisadas,
Hoje eu carrego a cruz das minhas dores!
O CONDENADO
Folga a justiça e geme a natureza.
Bocage
Alma feita somente de granito,
Condenada a sofrer cruel tortura
Pela rua sombria d’amargura
– Ei-lo que passa – réprobo maldito.
Olhar ao chão cravado e sempre fito,
Parece contemplar a sepultura
Das suas ilusões que a desventura
Desfez em pó no hórrido delito.
E, à cruz da expiação subindo mudo,
A vida a lhe fugir já sente prestes
Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.
O mundo é um sepulcro de tristeza,
Ali, por entre matas de ciprestes,
Folga a justiça e geme a natureza.
SONETO
Ouvi, senhora, o cântico sentido
Do coração que geme e s’estertora
N’ânsia letal que o mata e que o devora,
E que tornou-o assim, triste e descrido.
Ouvi, senhora, amei; de amor ferido,
As minhas crenças que alentei outrora
Rolam dispersas, pálidas agora,
Desfeitas todas num guaiar dorido.
E como a luz do sol vai-se apagando!
E eu triste, triste pela vida afora,
Eterno pegureiro caminhando,
Revolvo as cinzas de passadas eras,
Sombrio e mudo e glacial, senhora,
Como um coveiro a sepultar quimeras!
TRISTE REGRESSO
A Dias Paredes
Uma vez um poeta, um tresloucado,
Apaixonou-se d’uma virgem bela;
Vivia alegre o vate apaixonado,
Louco vivia, enamorado dela.
Mas a Pátria chamou-o. Era soldado,
E tinha que deixar pra sempre aquela
Meiga visão, olímpica e singela?!
E partiu, coração amargurado.
Dos canhões ao ribombo, e das metralhas,
Altivo lutador, venceu batalhas,
Juncou-lhe a fronte aurifulgente estrela,
E voltou, mas a fronte aureolada,
Ao chegar, pendeu triste e desmaiada,
No sepulcro da loura virgem bela.
INFELIZ
Alma viúva das paixões da vida,
Tu que, na estrada da existência em fora,
Cantaste e riste, e na existência agora
Triste soluças a ilusão perdida;
Oh! tu, que na grinalda emurchecida
De teu passado de felicidade
Foste juntar os goivos da Saudade
Às flores da Esperança enlanguescida;
Se nada te aniquila o desalento
Que te invade, e o pesar negro e profundo,
Esconde à Natureza o sofrimento,
E fica no teu ermo entristecida,
Alma arrancada do prazer do mundo,
Alma viúva das paixões da vida.
SONETO
N’augusta solidão dos cemitérios,
Resvalando nas sombras dos ciprestes,
Passam meus sonhos sepultados nestes
Brancos sepulcros, pálidos, funéreos.
São minhas crenças divinais, ardentes
– Alvos fantasmas pelos merencórios
Túmulos tristes, soturnais, silentes,
Hoje rolando nos umbrais marmóreos.
Quando da vida, no eternal soluço,
Eu choro e gemo e triste me debruço
Na lájea fria dos meus sonhos pulcros,
Desliza então a lúgubre coorte,
E rompe a orquestra sepulcral da morte,
Quebrando a paz suprema dos sepulcros.
NOIVADO
Os namorados ternos suspiravam,
Quando há de ser o venturoso dia!?!
Quando há de ser?! O noivo então dizia
E a noiva e ambos d’amores s’embriagavam.
E a mesma frase o noivo repetia;
Fora no campo pássaros trinavam,
Quando há de ser?! e os pássaros falavam;
Há de chegar, a brisa respondia.
Vinha rompendo a aurora majestosa,
Dos rouxinóis ao sonoroso harpejo
E a luz do sol vibrava esplendorosa.
Chegara enfim o dia desejado,
Ambos unidos, soluçara um beijo,
Era o supremo beijo de noivado!
SONETO
No meu peito arde em chamas abrasada
A pira da vingança reprimida,
E em centelhas de raiva ensurdecida
A vingança suprema e concentrada.
E espuma e ruge a cólera entranhada,
Como no mar a vaga embravecida
Vai bater-se na rocha empedernida,
Espumando e rugindo em marulhada.
Mas se das minhas dores ao calvário,
Eu subo na atitude dolorida
De um Cristo a redimir um mundo vário,
Em luta co’a natura sempiterna,
Já que do mundo não vinguei-me em vida,
A morte me será vingança eterna.
A MÁSCARA
Eu sei que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Aí existe a mágoa em sua essência.
No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
O peito rompe a capa tormentória
Para sorrindo palpitar contente.
Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam do prazer a taça
Sentem no peito a dor indefinida.
E entre a mágoa que másc’ra eterna apouca
A Humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.
AMOR E RELIGIÃO
Conheci-o: era um padre, um desses santos
Sacerdotes da Fé de crença pura,
Da sua fala na eternal doçura
Falava o coração. Quantos, oh! quantos
Ouviram dele frases de candura
Que d’infelizes enxugavam prantos!
E como alegres não ficaram tantos
Corações sem prazer e sem ventura!
No entanto dizem que este padre amara.
Morrera um dia desvairado, estulto,
Su’alma livre para o Céu se alara.
E Deus lhe disse: “És duas vezes santo,
Pois se da Religião fizeste culto,
Foste do amor o mártir sacrossanto.”
SONETO
Ao meu prezado irmão
Alexandre Júnior
pelas nove primaveras
que hoje completou.
Canta no espaço a passarada e canta
Dentro do peito o coração contente,
Tu’alma ri-se descuidosamente,
Minh’alma alegre no teu rir s’encanta.
Irmão querido, bom Papá, consente
Que neste dia de ventura tanta
Vá, num abraço de ternura santa,
Mostrar-te o afeto que meu peito sente.
Somente assim festejarei teus anos;
Enquanto outros que podem, dão-te enganos,
Joias, bonecos de formoso busto,
Eu só encontro no primor de rima
A justa oferta, a joia que te exprima
O amor fraterno do teu mano
Augusto.
Em 28 de abril de 1901.
O COVEIRO
Uma tarde de abril suave e pura
Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.
Lá encontrei um pálido coveiro
Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh’alma entristecida
E interroguei-o: “Eterno companheiro
Da morte, quem matou-te o coração?”
Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!
Depois, tomando a enxada gravemente,
Balbuciou, sorrindo tristemente:
– “Ai! foi por isso que me fiz coveiro!”
PECADORA
Tinha no olhar cetíneo, aveludado,
A chama cruel que arrasta os corações,
Os seios rijos eram dois brasões
Onde fulgia o símb’lo do Pecado.
Bela, divina, o porte emoldurado
No mármore sublime dos contornos,
Os seios brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no colo perfumado.
No entanto, esta mulher de grã beleza,
Moldada pela mão da Natureza,
Tornou-se a pecadora vil.
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