Cruzes na estrada. Aves com frio...

E, enquanto eu tropeçava sobre os paus,

A efígie apocalíptica do Caos

Dançava no meu cérebro sombrio!

O Céu estava horrivelmente preto

E as árvores magríssimas lembravam

Pontos de admiração que se admiravam

De ver passar ali meu esqueleto!

Sozinho, uivando hoffmânnicos dizeres,

Aprazia-me assim, na escuridão,

Mergulhar minha exótica visão

Na intimidade noumenal dos seres.

Eu procurava, com uma vela acesa,

O feto original, de onde decorrem

Todas essas moléculas que morrem

Nas transubstanciações da Natureza.

Mas o que meus sentidos apreendiam

Dentro da treva lúgubre, era só

O ocaso sistemático de pó,

Em que as formas humanas se sumiam!

Reboava, num ruidoso burburinho

Bruto, análogo ao peã de márcios brados,

A rebeldia dos meus pés danados

Nas pedras resignadas do caminho.

Sentia estar pisando com a planta ávida

Um povo de radículas e embriões

Prestes a rebentar, como vulcões,

Do ventre equatorial da terra grávida!

Dentro de mim, como num chão profundo,

Choravam, com soluços quase humanos,

Convulsionando Céus, almas e oceanos,

As formas microscópicas do mundo!

Era a larva agarrada a absconsas landes,

Era o abjeto vibrião rudimentar

Na impotência angustiosa de falar,

No desespero de não serem grandes!

Vinha-me à boca, assim, na ânsia dos párias,

Como o protesto de uma raça invicta,

O brado emocionante de vindicta

Das sensibilidades solitárias!

A longanimidade e o vilipêndio,

A abstinência e a luxúria, o bem e o mal

Ardiam no meu orco cerebral,

Numa crepitação própria de incêndio!

Em contraposição à paz funérea,

Doía profundamente no meu crânio

Esse funcionamento simultâneo

De todos os conflitos da matéria!

Eu, perdido no Cosmos, me tornara

A assembleia belígera malsã,

Onde Ormuzd guerreava com Arimã,

Na discórdia perpétua do sansara!

Já me fazia medo aquela viagem

A carregar pelas ladeiras tétricas,

Na óssea armação das vértebras simétricas

A angústia da biológica engrenagem!

No Céu, de onde se vê o Homem de rastros,

Brilhava, vingadora, a esclarecer

As manchas subjetivas do meu ser

A espionagem fatídica dos astros!

Sentinelas de espíritos e estradas,

Noite alta, com a sidérica lanterna,

Eles entravam todos na caverna

Das consciências humanas mais fechadas!

Ao castigo daquela rutilância,

Maior que o olhar que perseguiu Caim,

Cumpria-se afinal dentro de mim

O próprio sofrimento da Substância!

Como quem traz ao dorso muitas cargas

Eu sofria, ao colher simples gardênia,

A multiplicidade heterogênea

De sensações diversamente amargas.

Mas das árvores, frias como lousas,

Fluía, horrenda e monótona, uma voz

Tão grande, tão profunda, tão feroz

Que parecia vir da alma das cousas:

“Se todos os fenômenos complexos,

Desde a consciência à antítese dos sexos,

Vêm de um dínamo fluídico de gás,

Se hoje, obscuro, amanhã píncaros galgas,

A humildade botânica das algas

De que grandeza não será capaz?!

Quem sabe, enquanto Deus, Jeová ou Siva

Oculta à tua força cognitiva

Fenomenalidades que hão de vir,

Se a contração que hoje produz o choro

Não há de ser no século vindouro

Um simples movimento para rir?!

Que espécies outras, do Equador aos pólos,

Na prisão milenária dos subsolos,

Rasgando avidamente o húmus malsão,

Não trabalham, com a febre mais bravia,

Para erguer, na ânsia cósmica, a Energia

À última etapa da objetivação?!

É inútil, pois, que, a espiar enigmas, entres

Na química genésica dos ventres,

Porque em todas as coisas, afinal,

Crânio, ovário, montanha, árvore, iceberg,

Tragicamente, diante do Homem, se ergue

A esfinge do Mistério Universal!

A própria força em que teu Ser se expande,

Para esconder-se nessa esfinge grande,

Deu-te (oh! mistério que se não traduz!)

Neste astro ruim de tênebras e abrolhos

A efeméride orgânica dos olhos

E o simulacro atordoador da Luz!

Por isto, oh! filho dos terráqueos limos,

Nós, arvoredos desterrados, rimos

Das vãs diatribes com que aturdes o ar...

Rimos, isto é, choramos, porque, em suma,

Rir da desgraça que de ti ressuma

É quase a mesma coisa que chorar!”

Às vibrações daquele horrível carme

Meu dispêndio nervoso era tamanho

Que eu sentia no corpo um vácuo estranho

Como uma boca sôfrega a esvaziar-me!

Na avançada epiléptica dos medos

Cria ouvir, a escalar Céus e apogeus,

A voz cavernosíssima de Deus,

Reproduzida pelos arvoredos!

Agora, astro decrépito, em destroços,

Eu, desgraçadamente magro, a erguer-me,

Tinha necessidade de esconder-me

Longe da espécie humana, com os meus ossos!

Restava apenas na minha alma bruta

Onde frutificara outrora o Amor

Uma volicional fome interior

De renúncia budística absoluta!

Porque, naquela noite de ânsia e inferno,

Eu fora, alheio ao mundanário ruído,

A maior expressão do homem vencido

Diante da sombra do Mistério Eterno!

A NOITE

A nebulosidade ameaçadora

Tolda o éter, mancha a gleba, agride os rios

E urde amplas teias de carvões sombrios

No ar que álacre e radiante, há instantes, fora.

A água transubstancia-se. A onda estoura

Na negridão do oceano e entre os navios

Troa bárbara zoada de ais bravios,

Extraordinariamente atordoadora.

À custódia do anímico registro

A planetária escuridão se anexa...

Somente, iguais a espiões que acordam cedo,

Ficam brilhando com fulgor sinistro

Dentro da treva onímoda e complexa

Os olhos fundos dos que estão com medo!

A OBSESSÃO DO SANGUE

Acordou, vendo sangue... Horrível! O osso

Frontal em fogo... Ia talvez morrer,

Disse. Olhou-se no espelho. Era tão moço,

Ah! Certamente não podia ser!

Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,

Na mão dos açougueiros, a escorrer

Fita rubra de sangue muito grosso,

A carne que ele havia de comer!

No inferno da visão alucinada,

Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,

Viu vísceras vermelhas pelo chão...

E amou, com um berro bárbaro de gozo,

O monocromatismo monstruoso

Daquela universal vermelhidão!

VOX VICTIMAE

Morto! Consciência quieta haja o assassino

Que me acabou, dando-me ao corpo vão

Esta volúpia de ficar no chão

Fruindo na tabidez sabor divino!

Espiando o meu cadáver ressupino,

No mar da humana proliferação,

Outras cabeças aparecerão

Para compartilhar do meu destino!

Na festa genetlíaca do Nada,

Abraço-me com a terra atormentada

Em contubérnio convulsionador...

E ai! Como é boa esta volúpia obscura

Que une os ossos cansados da criatura

Ao corpo ubiquitário do Criador!

O ÚLTIMO NÚMERO

Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,

A Ideia estertorava-se... No fundo

Do meu entendimento moribundo

Jazia o Último Número cansado.

Era de vê-lo, imóvel, resignado,

Tragicamente de si mesmo oriundo,

Fora da sucessão, estranho ao mundo,

Como o reflexo fúnebre do Incriado:

Bradei: – Que fazes ainda no meu crânio?

E o Último Número, atro e subterrâneo,

Parecia dizer-me: “É tarde, amigo!

Pois que a minha autogênica Grandeza

Nunca vibrou em tua língua presa,

Não te abandono mais! Morro contigo!”

SAUDADE

Hoje que a mágoa me apunhala o seio,

E o coração me rasga atroz, imensa,

Eu a bendigo da descrença em meio,

Porque eu hoje só vivo da descrença.

À noite quando em funda soledade

Minh’alma se recolhe tristemente,

Pra iluminar-me a alma descontente,

Se acende o círio triste da Saudade.

E assim afeito às mágoas e ao tormento,

E à dor e ao sofrimento eterno afeito,

Para dar vida à dor e ao sofrimento,

Da saudade na campa enegrecida

Guardo a lembrança que me sangra o peito,

Mas que no entanto me alimenta a vida.

ABANDONADA

Ao meu irmão Odilon dos Anjos

Bem depressa sumiu-se a vaporosa

Nuvem de amores, de ilusões tão bela;

O brilho se apagou daquela estrela

Que a vida lhe tornava venturosa!

Sombras que passam, sombras cor-de-rosa

– Todas se foram num festivo bando,

Fugazes sonhos, gárrulos voando

– Resta somente um’alma tristurosa!

Coitada! o gozo lhe fugiu correndo,

Hoje ela habita a erma soledade,

Em que vive e em que aos poucos vai morrendo!

Seu rosto triste, seu olhar magoado,

Fazem lembrar em noite de saudade

A luz mortiça de um olhar nublado.

CETICISMO

Desci um dia ao tenebroso abismo,

Onde a Dúvida ergueu altar profano;

Cansado de lutar no mundo insano,

Fraco que sou, volvi ao ceticismo.

Da Igreja – a Grande Mãe – o exorcismo

Terrível me feriu, e então sereno,

De joelhos aos pés do Nazareno

Baixo rezei, em fundo misticismo:

– Oh! Deus, eu creio em ti, mas me perdoa!

Se esta dúvida cruel qual me magoa

Me torna ínfimo, desgraçado réu.

Ah, entre o medo que o meu Ser aterra,

Não sei se viva pra morrer na terra,

Não sei se morra pra viver no Céu!

MÁGOAS

Quando nasci, num mês de tantas flores,

Todas murcharam, tristes, langorosas,

Tristes fanaram redolentes rosas,

Morreram todas, todas sem olores.

Mais tarde da existência nos verdores

Da infância nunca tive as venturosas

Alegrias que passam bonançosas,

Oh! Minha infância nunca teve flores!

Volvendo à quadra azul da mocidade,

Minh’alma levo aflita à Eternidade,

Quando a morte matar meus dissabores.

Cansado de chorar pelas estradas,

Exausto de pisar mágoas pisadas,

Hoje eu carrego a cruz das minhas dores!

O CONDENADO

Folga a justiça e geme a natureza.

Bocage

Alma feita somente de granito,

Condenada a sofrer cruel tortura

Pela rua sombria d’amargura

– Ei-lo que passa – réprobo maldito.

Olhar ao chão cravado e sempre fito,

Parece contemplar a sepultura

Das suas ilusões que a desventura

Desfez em pó no hórrido delito.

E, à cruz da expiação subindo mudo,

A vida a lhe fugir já sente prestes

Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.

O mundo é um sepulcro de tristeza,

Ali, por entre matas de ciprestes,

Folga a justiça e geme a natureza.

SONETO

Ouvi, senhora, o cântico sentido

Do coração que geme e s’estertora

N’ânsia letal que o mata e que o devora,

E que tornou-o assim, triste e descrido.

Ouvi, senhora, amei; de amor ferido,

As minhas crenças que alentei outrora

Rolam dispersas, pálidas agora,

Desfeitas todas num guaiar dorido.

E como a luz do sol vai-se apagando!

E eu triste, triste pela vida afora,

Eterno pegureiro caminhando,

Revolvo as cinzas de passadas eras,

Sombrio e mudo e glacial, senhora,

Como um coveiro a sepultar quimeras!

TRISTE REGRESSO

A Dias Paredes

Uma vez um poeta, um tresloucado,

Apaixonou-se d’uma virgem bela;

Vivia alegre o vate apaixonado,

Louco vivia, enamorado dela.

Mas a Pátria chamou-o. Era soldado,

E tinha que deixar pra sempre aquela

Meiga visão, olímpica e singela?!

E partiu, coração amargurado.

Dos canhões ao ribombo, e das metralhas,

Altivo lutador, venceu batalhas,

Juncou-lhe a fronte aurifulgente estrela,

E voltou, mas a fronte aureolada,

Ao chegar, pendeu triste e desmaiada,

No sepulcro da loura virgem bela.

INFELIZ

Alma viúva das paixões da vida,

Tu que, na estrada da existência em fora,

Cantaste e riste, e na existência agora

Triste soluças a ilusão perdida;

Oh! tu, que na grinalda emurchecida

De teu passado de felicidade

Foste juntar os goivos da Saudade

Às flores da Esperança enlanguescida;

Se nada te aniquila o desalento

Que te invade, e o pesar negro e profundo,

Esconde à Natureza o sofrimento,

E fica no teu ermo entristecida,

Alma arrancada do prazer do mundo,

Alma viúva das paixões da vida.

SONETO

N’augusta solidão dos cemitérios,

Resvalando nas sombras dos ciprestes,

Passam meus sonhos sepultados nestes

Brancos sepulcros, pálidos, funéreos.

São minhas crenças divinais, ardentes

– Alvos fantasmas pelos merencórios

Túmulos tristes, soturnais, silentes,

Hoje rolando nos umbrais marmóreos.

Quando da vida, no eternal soluço,

Eu choro e gemo e triste me debruço

Na lájea fria dos meus sonhos pulcros,

Desliza então a lúgubre coorte,

E rompe a orquestra sepulcral da morte,

Quebrando a paz suprema dos sepulcros.

NOIVADO

Os namorados ternos suspiravam,

Quando há de ser o venturoso dia!?!

Quando há de ser?! O noivo então dizia

E a noiva e ambos d’amores s’embriagavam.

E a mesma frase o noivo repetia;

Fora no campo pássaros trinavam,

Quando há de ser?! e os pássaros falavam;

Há de chegar, a brisa respondia.

Vinha rompendo a aurora majestosa,

Dos rouxinóis ao sonoroso harpejo

E a luz do sol vibrava esplendorosa.

Chegara enfim o dia desejado,

Ambos unidos, soluçara um beijo,

Era o supremo beijo de noivado!

SONETO

No meu peito arde em chamas abrasada

A pira da vingança reprimida,

E em centelhas de raiva ensurdecida

A vingança suprema e concentrada.

E espuma e ruge a cólera entranhada,

Como no mar a vaga embravecida

Vai bater-se na rocha empedernida,

Espumando e rugindo em marulhada.

Mas se das minhas dores ao calvário,

Eu subo na atitude dolorida

De um Cristo a redimir um mundo vário,

Em luta co’a natura sempiterna,

Já que do mundo não vinguei-me em vida,

A morte me será vingança eterna.

A MÁSCARA

Eu sei que há muito pranto na existência,

Dores que ferem corações de pedra,

E onde a vida borbulha e o sangue medra,

Aí existe a mágoa em sua essência.

No delírio, porém, da febre ardente

Da ventura fugaz e transitória

O peito rompe a capa tormentória

Para sorrindo palpitar contente.

Assim a turba inconsciente passa,

Muitos que esgotam do prazer a taça

Sentem no peito a dor indefinida.

E entre a mágoa que másc’ra eterna apouca

A Humanidade ri-se e ri-se louca

No carnaval intérmino da vida.

AMOR E RELIGIÃO

Conheci-o: era um padre, um desses santos

Sacerdotes da Fé de crença pura,

Da sua fala na eternal doçura

Falava o coração. Quantos, oh! quantos

Ouviram dele frases de candura

Que d’infelizes enxugavam prantos!

E como alegres não ficaram tantos

Corações sem prazer e sem ventura!

No entanto dizem que este padre amara.

Morrera um dia desvairado, estulto,

Su’alma livre para o Céu se alara.

E Deus lhe disse: “És duas vezes santo,

Pois se da Religião fizeste culto,

Foste do amor o mártir sacrossanto.”

SONETO

Ao meu prezado irmão

Alexandre Júnior

pelas nove primaveras

que hoje completou.

Canta no espaço a passarada e canta

Dentro do peito o coração contente,

Tu’alma ri-se descuidosamente,

Minh’alma alegre no teu rir s’encanta.

Irmão querido, bom Papá, consente

Que neste dia de ventura tanta

Vá, num abraço de ternura santa,

Mostrar-te o afeto que meu peito sente.

Somente assim festejarei teus anos;

Enquanto outros que podem, dão-te enganos,

Joias, bonecos de formoso busto,

Eu só encontro no primor de rima

A justa oferta, a joia que te exprima

O amor fraterno do teu mano

Augusto.

Em 28 de abril de 1901.

O COVEIRO

Uma tarde de abril suave e pura

Visitava eu somente ao derradeiro

Lar; tinha ido ver a sepultura

De um ente caro, amigo verdadeiro.

Lá encontrei um pálido coveiro

Com a cabeça para o chão pendida;

Eu senti a minh’alma entristecida

E interroguei-o: “Eterno companheiro

Da morte, quem matou-te o coração?”

Ele apontou para uma cruz no chão,

Ali jazia o seu amor primeiro!

Depois, tomando a enxada gravemente,

Balbuciou, sorrindo tristemente:

– “Ai! foi por isso que me fiz coveiro!”

PECADORA

Tinha no olhar cetíneo, aveludado,

A chama cruel que arrasta os corações,

Os seios rijos eram dois brasões

Onde fulgia o símb’lo do Pecado.

Bela, divina, o porte emoldurado

No mármore sublime dos contornos,

Os seios brancos, palpitantes, mornos,

Dançavam-lhe no colo perfumado.

No entanto, esta mulher de grã beleza,

Moldada pela mão da Natureza,

Tornou-se a pecadora vil. Do fado,

Do destino fatal, presa, morria

Uma noite entre as vascas da agonia

Tendo no corpo o verme do pecado!

NO CLAUSTRO

Pelas do claustro salas silenciosas,

De lutulentas, úmidas arcadas,

Na vastidão silente das caladas

Abóbadas sombrias tenebrosas,

Vagueiam tristemente desfiladas

De freiras e de monjas tristurosas,

Que guardam cinzas de ilusões passadas,

Que guardam pét’las de funéreas rosas.

E à noite quando rezam na clausura,

No sigilo das rezas misteriosas,

Nem a sombra mais leve de ventura!

Sempre as arcadas ogivais, desnudas,

E as mesmas monjas sempre tristurosas,

E as mesmas portas impassíveis, mudas!

IL TROVATORE

Canta da torre o trovador saudoso

Addio, Eleonora! oh! sonhos meus!

E o canto se desprende harmonioso

Na vibração final do extremo adeus.

Repercute, dolente, mavioso,

Subindo pelo Azul da Inspiração;

Assim canta também meu coração,

Trovador torturado e angustioso.

Ai! não, não acordeis, lembranças minhas!

Saudade d’umas noites em que vinhas

Cantar comigo um doce desafio!

Mas pouco a pouco, os sons esmorecendo,

Perdem-se as notas pelo Azul morrendo

Addio, Eleonora, addio, addio!

A LOUCA

A Dias Paredes

Quando ela passa: – a veste desgrenhada,

O cabelo revolto em desalinho,

No seu olhar feroz eu adivinho

O mistério da dor que a traz penada.

Moça, tão moça e já desventurada;

Da desdita ferida pelo espinho,

Vai morta em vida assim pelo caminho,

No sudário da mágoa sepultada.

Eu sei a sua história. – Em seu passado

Houve um drama d’amor misterioso

– O segredo d’um peito torturado –

E hoje, para guardar a mágoa oculta,

Canta, soluça – o coração saudoso,

Chora, gargalha, a desgraçada estulta.

PRIMAVERA

A meu irmão Odilon dos Anjos

Primavera gentil dos meus amores,

– Arca cerúlea de ilusões etéreas,

Chova-te o Céu cintilações sidéreas

E a terra chova no teu seio flores!

Esplende, Primavera, os teus fulgores,

Na auréola azul dos dias teus risonhos,

Tu que sorveste o fel das minhas dores

E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!

Cedo virá, porém, o triste outono,

Os dias voltarão a ser tristonhos

E tu hás de dormir o eterno sono,

Num sepulcro de rosas e de flores,

Arca sagrada de cerúleos sonhos,

Primavera gentil dos meus amores!

A ESPERANÇA

A Esperança não murcha, ela não cansa,

Também como ela não sucumbe a Crença.

Vão-se sonhos nas asas da Descrença,

Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;

No entanto o mundo é uma ilusão completa,

E não é a Esperança por sentença

Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito

Sirva-te a Crença de fanal bendito,

Salve-te a glória no futuro – avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,

Também espero o fim do meu tormento,

Na voz da Morte a me bradar: descansa!

SONETO

Senhora, eu trajo o luto do Passado,

Este luto sem fim que é o meu Calvário

E anseio e choro, delirante e vário,

Sonâmbulo da dor angustiado.

Quantas venturas que me acalentaram!

Meu peito, túm’lo do prazer finado,

Foi outrora do riso abençoado,

O berço onde as venturas se embalaram.

Mas não queiras saber nunca, risonha,

O mistério d’um peito que estertora

E o segredo d’um’alma que não sonha!

Não, não busques saber por que, Senhora,

É minha sina perenal, tristonha

– Cantar o Ocaso quando surge a Aurora.

SOFREDORA

Cobre-lhe a fria palidez do rosto

O sendal da tristeza que a desola;

Chora – o orvalho do pranto lhe perola

As faces maceradas de desgosto.

Quando o rosário de seu pranto rola,

Das brancas rosas do seu triste rosto

Que rolam murchas como um sol já posto

Um perfume de lágrimas se evola.

Tenta às vezes, porém, nervosa e louca

Esquecer por momento a mágoa intensa

Arrancando um sorriso à flor da boca.

Mas volta logo um negro desconforto,

Bela na Dor, sublime na Descrença,

Como Jesus a soluçar no Horto!

ECOS D’ALMA

Oh! madrugada de ilusões, santíssima,

Sombra perdida lá do meu Passado,

Vinde entornar a clâmide puríssima

Da luz que fulge no ideal sagrado!

Longe das tristes noites tumulares

Quem me dera viver entre quimeras,

Por entre o resplandor das Primaveras

Oh! madrugada azul dos meus sonhares;

Mas quando vibrar a última balada

Da tarde e se calar a passarada

Na bruma sepulcral que o céu embaça,

Quem me dera morrer então risonho,

Fitando a nebulosa do meu Sonho

E a Via-Láctea da Ilusão que passa!

Amor e Crença

– E sê bendita!

H. Sienkiewicz

Sabes que é Deus? Esse infinito e santo

Ser que preside e rege os outros seres,

Que os encantos e a força dos poderes

Reúne tudo em si, num só encanto?

Esse mistério eterno e sacrossanto,

Essa sublime adoração do crente,

Esse manto de amor doce e clemente

Que lava as dores e que enxuga o pranto?!

Ah! se queres saber a sua grandeza,

Estende o teu olhar à Natureza,

Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!

Deus é o Templo do Bem. Na altura Imensa,

O Amor é a hóstia que bendiz a Crença,

Ama, pois, crê em Deus, e... sê bendita!

ARIANA

Ela é o tipo perfeito da ariana,

Branca, nevada, púbere, mimosa,

A carne exuberante e capitosa

Trescala a essência que de si dimana.

As níveas pomas do candor da rosa,

Rendilhando-lhe o colo de sultana,

Emergem da camisa cetinosa

Entre as rendas sutis de filigrana.

Dorme talvez. Em flácido abandono

Lembra formosa no seu casto sono

A languidez dormente da indiana,

Enquanto o amante pálido, a seu lado

Medita, a fronte triste, o olhar velado

No Mistério da Carne Soberana.

TEMPOS IDOS

Não enterres, coveiro, o meu Passado,

Tem pena dessas cinzas que ficaram;

Eu vivo dessas crenças que passaram,

E quero sempre tê-las ao meu lado!

Não, não quero o meu sonho sepultado

No cemitério da Desilusão,

Que não se enterra assim sem compaixão

Os escombros benditos de um Passado!

Ai! não me arranques d’alma este conforto!

– Quero abraçar o meu Passado morto,

– Dizer adeus aos sonhos meus perdidos!

Deixa ao menos que eu suba à Eternidade

Velado pelo círio da Saudade,

Ao dobre funeral dos tempos idos!

SONETO

(Lendo o “Poema de Maio”)

Na rua em funeral ei-la que passa,

A romaria eterna dos aflitos,

A procissão dos tristes, dos proscritos,

Dos romeiros saudosos da desgraça.

E na choça a lamúria que traspassa

O coração, além, ânsias e gritos

De mães que arquejam sobre os pobrezitos

Filhos que a Fome derrubou na praça.

Entre todos, porém, lânguida e bela,

Da juventude a virginal capela

A lhe cingir de luz a fronte baça,

Vai Corina mendiga e esfarrapada,

A alma saudosa pelo amor vibrada,

– A Stella Matutina da Desgraça!

SONETO

Pareceu-me inda ouvir o nome dela

No badalar monótono dos sinos.

Hermeto Lima

Adeus, adeus, adeus! E, suspirando,

Saí deixando morta a minha amada,

Vinha o luar iluminando a estrada

E eu vinha pela estrada soluçando.

Perto, um ribeiro claro murmurando

Muito baixinho como quem chorava,

Parecia o ribeiro estar chorando

As lágrimas que eu triste gotejava.

Súbito ecoou do sino o som profundo!

Adeus! – eu disse. Para mim no mundo

Tudo acabou-se, apenas restam mágoas.

Mas no mistério astral da noite bela

Pareceu-me inda ouvir o nome dela

No marulhar monótono das águas!

A AERONAVE

Cindindo a vastidão do Azul profundo,

Sulcando o espaço, devassando a terra,

A aeronave que um mistério encerra

Vai pelo espaço acompanhando o mundo.

E na esteira sem fim da azúlea esfera

Ei-la embalada n’amplidão dos ares,

Fitando o abismo sepulcral dos mares,

Vencendo o azul que ante si s’erguera.

Voa, se eleva em busca do Infinito,

E como um despertar de estranho mito,

Auroreando a humana consciência.

Cheia da luz do cintilar de um astro,

Deixa ver na fulgência do seu rastro

A trajetória augusta da Ciência.

LIRIAL

Por que choras assim, tristonho lírio,

Se eu sou o orvalho eterno que te chora,

P’ra que pendes o cálice que enflora

Teu seio branco do palor do círio?!

Baixa a mim, irmã pálida da Aurora,

Estrela esmaecida do Martírio;

Envolto da tristeza no delírio,

Deixa beijar-te a face que descora!

Fosses antes a rosa purpurina

E eu beijaria a pétala divina

Da rosa, onde não pousa a desventura.

Ai! que ao menos talvez na vida escassa

Não chorasses à sombra da desgraça,

Para eu sorrir à sombra da ventura!

A MINHA ESTRELA

A meu irmão Aprígio A.

E eu disse – Vai-te, estrela do Passado!

Esconde-te no Azul da Imensidade

Lá onde nunca chegue esta saudade,

– A sombra deste afeto estiolado.

Disse, e a estrela foi p’ra o Céu subindo,

Minh’alma que de longe a acompanhava,

Viu o adeus que do Céu ela enviava,

E quando ela no Azul foi-se sumindo

Surgia a Aurora – a mágica princesa!

E eu vi o Sol do Céu iluminando

A Catedral da Grande Natureza.

Mas a noite chegou, triste, com ela

Negras sombras também foram chegando,

E nunca mais eu vi a minha estrela!

SONETO

A praça estava cheia. O condenado

Transpunha nobremente o cadafalso,

Puro de crime, isento de pecado,

Vítima augusta de indelével falso.

E na atitude do Crucificado,

O olhar azul pregado n’amplidão,

Pude rever naquele desgraçado

O drama lutuoso da Paixão.

Quando do algoz cruento o braço alçado

Se dispunha a vibrar sem compaixão

O golpe na cabeça do culpado

Ele, o algoz – o criminoso – então,

Caiu na praça como fulminado

A soluçar: perdão, perdão, perdão!

VERSOS D’UM EXILADO

Eu vou partir. Na límpida corrente

Rasga o batel o leito d’água fina

– Albatroz deslizando mansamente

Como se fosse vaporosa Ondina.

Exilado de ti, oh! Pátria! ausente

Irei cantar a mágoa peregrina

Como canta o pastor a matutina

Trova d’amor, à luz do sol nascente!

Não mais virei talvez e, lá sozinho,

Hei de lembrar-me do meu pátrio ninho,

D’onde levo comigo a nostalgia

E esta lembrança que hoje me quebranta

E que eu levo hoje como a imagem santa

Dos sonhos todos que já tive um dia!

SONETO[1]

Ergue, criança, a fronte condorina

Que é tua fronte, oh! genial criança,

É como a estrela-d’alva da esperança,

Do talento sagrado que a ilumina!

Ergue-a, pois, e que, à auréola purpurina

Do Sol da Ciência, o rútilo tesouro

Do Estudo – o Grande Mestre – que te ensina,

Chova sobre ela suas gemas d’ouro!

E hoje que colhes um laurel bendito,

Aceita a saudação que num contrito

Fervor, eleva, qual penhor sincero,

Um peito amigo a outro peito amigo,

A um gênio que desponta e que eu bendigo,

A um coração de irmão que tanto quero!

Engenho Pau d’Arco – 14 de dezembro de 1901.

[1] Em epígrafe: “Ao meu prezado irmão Alexandre Júnior, pelo término dos seus estudos neste ano, em troféu de homenagem ao grande aproveitamento que deles soube tirar; a aplicação será sempre a “alma mater” da inteligência humana, e o caminho mais perfeito que nos pode levar à tortuosa via da Ciência.” (N.E.)

A ESMOLA DE DULCE

Ao Alfredo A.

E todo o dia eu vou como um perdido

De dor, por entre a dolorosa estrada,

Pedir a Dulce, a minha bem-amada,

A esmola dum carinho apetecido.

E ela fita-me, o olhar enlanguescido,

E eu balbucio trêmula balada:

– Senhora, dai-me u’a esmola – e estertorada

A minha voz soluça num gemido.

Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,

Estendo à Dulce a mão, a fé perdida,

E dos lábios de Dulce cai um beijo.

Depois, como este beijo me consola!

Bendita seja a Dulce! A minha vida

Estava unicamente nessa esmola.

Ave DOLOROSA

Ave perdida para sempre – crença

Perdida – segue a trilha que te traça

O Destino, ave negra da Desgraça,

Gêmea da Mágoa e núncia da Descrença!

Dos sonhos meus na Catedral imensa

Que nunca pouses. Lá, na névoa baça,

Onde o teu vulto lúrido esvoaça,

Seja-te a vida uma agonia intensa!

Vives de crenças mortas e te nutres,

Empenhada na sanha dos abutres,

Num desespero rábido, assassino...

E hás de tombar um dia em mágoas lentas,

Negrejada das asas lutulentas

Que te emprestar o corvo do Destino!

SONETO

Gênio das trevas lúgubres, acolhe-me,

Leva-me o esp’rito dessa luz que mata,

E a alma me ofusca e o peito me maltrata,

E o viver calmo e sossegado tolhe-me!

Leva-me, obumbra-me em teu seio, acolhe-me

N’asa da Morte redentora, e à ingrata

Luz deste mundo em breve me arrebata

E num pallium de tênebras recolhe-me!

Aqui há muita luz e muita aurora,

Há perfumes d’amor – venenos d’alma –

E eu busco a plaga onde o repouso mora,

E as trevas moram, e, onde d’água raso

O olhar não trago, nem me turba a calma

A aurora deste amor que é o meu ocaso!

NIMBOS

Nimbos de bronze que empanais escuros

O santuário azul da Natureza,

Quando vos vejo, negros palinuros

Da tempestade negra e da tristeza,

Abismados na bruma enegrecida,

Julgo ver nos reflexos de minh’alma

As mesmas nuvens deslizando em calma,

Os nimbos das procelas desta vida;

Mas quando o céu é límpido, sem bruma

Que a transparência tolde, sem nenhuma

Nuvem sequer; então, num mar de esp’rança,

Que o céu reflete, a vida é qual risonho

Batel, e a alma é a Flâmula do sonho,

Que o guia e o leva ao porto da bonança.

O MAR

O mar é triste como um cemitério;

Cada rocha é uma eterna sepultura

Banhada pela imácula brancura

De ondas chorando num albor etéreo.

Ah! dessas vagas no bramir funéreo

Jamais vibrou a sinfonia pura

Do amor; lá, só descanta, dentre a escura

Treva do oceano, a voz do meu saltério!

Quando a cândida espuma dessas vagas,

Banhando a fria solidão das fragas,

Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma,

Reflete a luz do sol que já não arde,

Treme na treva a púrpura da tarde,

Chora a Saudade envolta nesta espuma!

Pau d’Arco – 1902.

ANSEIO

Nessas paragens desoladas, onde

O silêncio campeia soberano

Morreram notas do bulício humano,

Nem vibra a corda que a saudade esconde.

Anseios d’alma aqui se perdem. Donde

Fluiu outrora a luz dum doce engano,

Hoje é trevas, é dor, é desengano,

E eu ergo preces que ninguém responde.

Triste criança virginal, quem dera

Voar est’alma a ti, longe dos laços

Dessa jaula de carne que a encarcera!

Ah! que unidos assim, lá nos espaços,

Cantarias do amor a primavera,

Tendo a minh’alma presa nos teus braços!

Pau d’Arco – 1902.

SONETO

Aurora morta, foge! Eu busco a virgem loura

Que fugiu-me do peito ao teu clarão de morte

E Ela era a minha estrela, o meu único Norte,

O grande Sol de afeto – o Sol que as almas doura!

Fugiu... e em si levou a Luz consoladora

Do amor – esse clarão eterno d’alma forte –

Astro da minha Paz, Sírius da minha Sorte

E da Noite da vida a Vênus Redentora.

Agora, oh! minha Mágoa, agita as tuas asas,

Vem! rasga deste peito as nebulosas gazas

E, num Pálio auroral de Luz deslumbradora,

Ascende à Claridade. Adeus oh! Dia escuro,

Dia do meu Passado! Irrompe, meu Futuro;

Aurora morta, foge – eu busco a virgem loura!

Pau d’Arco – 1902.

NO CAMPO

Tarde. Um arroio canta pela umbrosa

Estrada; as águas límpidas alvejam

Como cristais. Aragem suspirosa

Agita os roseirais que ali vicejam.

No alto, entretanto, os astros rumorejam

Um presságio de noite luminosa

E ei-la que assoma – a Louca tenebrosa,

Branca, emergindo às trevas que a negrejam.

Chora a corrente múrmura, e, à dolente

Unção da noite, as flores também choram

Num chuveiro de pétalas, nitente,

Pendem e caem – os roseirais descoram

E elas boiam no pranto da corrente

Que as rosas, ao luar, chorando enfloram.

Pau d’Arco – 1902

SONETO

Canta o teu riso esplêndida sonata,

E há, no teu riso de anjos encantados,

Como que um doce tilintar de prata

E a vibração de mil cristais quebrados.

Bendito o riso assim que se desata

– Cítara suave dos apaixonados,

Sonorizando os sonhos já passados,

Cantando sempre em trínula volata!

Aurora ideal dos dias meus risonhos,

Quando, úmido de beijos em ressábios

Teu riso esponta, despertando sonhos...

Ah! num delíquio de ventura louca,

Vai-se minh’alma toda nos teus lábios,

Ri-se o meu coração na tua boca!

Pau d’Arco – 1902.

CRAVO DE NOIVA

Ao Dias Paredes

Cravo de noiva. A nívea cor de cera

Que o seu seio branqueja, é como os prantos

Níveos, que a virgem chora, entre os encantos

Dum noivado risonho em primavera.

Flor dos mistérios d’alma, sacrossantos,

Guarda segredos divinais que eu dera

Duas vidas, se duas eu tivera,

P’ra desvendar os seus segredos santos.

E tudo quer que nessa flor se enleve

O poeta. É que dessa concha armínea

Da lactescência angélica da neve,

Se evolam castos, virginais aromas

De essência estranha; olências de virgínea

Carne fremindo num langor de pomas.

Pau d’Arco – 1902.

PLENILÚNIO

Desmaia o plenilúnio. A gaze pálida

Que lhe serve de alvíssimo sudário

Respira essências raras, toda a cálida

Mística essência desse alampadário.

E a lua é como um pálido sacrário,

Onde as almas das virgens em crisálida

De seios alvos e de fronte pálida,

Derramam a urna dum perfume vário.

Voga a lua na etérea imensidade!

Ela, eterna noctâmbula do Amor,

Eu, noctâmb’lo da Dor e da Saudade.

Ah! como a branca e merencória lua,

Também envolta num sudário – a Dor,

Minh’alma triste pelos céus flutua!

Pau d’Arco – 1902.

Insânia

No mundo vago das idealidades

Afundei minha louca fantasia;

Cedo atraiu-me a áurea fulgidia

Da refulgência antiga das idades.

Mas ao esplendor das velhas majestades

Vacila a mente e o seu ardor esfria;

Busquei então, na nebulosa fria

Das Ilusões, sonhar novas idades.

Que desespero insano me apavora!

Aqui, chora um ocaso sepultado;

Ali, pompeia a luz da branca aurora.

E eu tremo e hesito entre um mistério escuro:

– Quero partir em busca do Passado,

– Quero correr em busca do Futuro.

Paraíba - 1902.

O BANDOLIM

Cantas, soluças, bandolim do Fado

E de Saudade o peito meu transbordas;

Choras, e eu julgo que nas tuas cordas

Choram todas as cordas do Passado!

Guardas a alma talvez dum desgraçado,

Um dia morto da Ilusão às bordas,

Tanto que cantas, e ilusões acordas,

Tanto que gemes, bandolim do Fado.

Quando alta noite, a lua é triste e calma,

Teu canto, vindo de profundas fráguas,

É como as nênias do Coveiro d’alma!

Tudo eterizas num coral de endechas...

E vais aos poucos soluçando mágoas,

E vais aos poucos soluçando queixas!

ARA MALDITA

Como um’ave, cindindo os céus risonhos,

Meiga, tu vinhas a cindir os ares

E, qual hóstia caindo dos altares,

Foste caindo n’ara dos meus sonhos.

E eu vi os seios teus virem inconhos,

– Esses teus seios que os cerúleos lares

Branquejaram de eternos nenufares,

Para nunca tocarem negros sonhos!

Caíste enfim no meu sacrário ardente,

Quiseste-me beijar a ara do peito

E eu quis beijar-te o lábio redolente.

E beijei-te, mas eis que neste enleio,

Tocando n’ara negra o níveo seio,

Caíste morta ao celestial preceito.

SONETO

Na etérea limpidez de um sonho branco,

Lúcia sorriu-se à bruma nevoenta,

E a procela chorou num fundo arranco

De mágoa triste e de paixão violenta.

E Lúcia disse à bruma lutulenta:

– Foge, senão co’o o meu olhar te espanco!

E eu vi que, à voz de Lúcia, grave e lenta,

O céu tremia em seu trevoso flanco.

Fulgia a bruma para sempre.