A vida
Despontava na aurora amortecida
À rutilância mágica do dia.
Aquele riso despertava a aurora!
E tudo riu-se, e como Lúcia, agora,
O sol, alegre e rubro, também ria!
TREVA E LUZ
Neste pélago escuro em que te afundas,
Longe das sombras aurorais e amadas,
Sentes o peito em ânsias revoltadas,
Diluis teu peito em sensações profundas.
Mas, eis que emerges, luminosa, às fundas
Águas do mar das glórias obumbradas,
E, ante o branco estendal das madrugadas,
Nua, em banho ideal de amor te inundas.
Agora, à luz das alvoradas santas
Ungem-te o corpo redolências tantas,
Que, ao ver-te nua, o Mundo se concentre,
E a lua, a Virgem Mãe dos céus escampos,
Que beija a terra e que abençoa os campos,
Beije-te o seio e te abençoe o ventre!
SONETO
O Templo da Descrença – ei-lo que avisto. A imensa
Cruz da Dor lá está serena como um lírio!
E vejo o pedestal que sustenta o Martírio;
E vejo o pedestal que sustenta a Descrença!
– A colunata exul do Sonho Morto – o círio
Da Quimera Falaz, o túmulo da Crença,
Tudo! até o altar onde a Angústia vibra intensa
Numa fúria assombral de feras em delírio!
Penetro louco enfim o abismo funerário,
E a rasgar, a rasgar o lúrido sacrário,
Em mim como no Templo a Angústia se condensa,
E em mim como no Templo, urnas de Sonho, e, em bando,
Flores mortas da Aurora, e, eu sombrio chorando
Ante a imagem fatal do Sepulcro da Crença!
A PESTE
Filha da raiva de Jeová – a Peste,
Num insano ceifar que aterra e espanta,
De espaço a espaço sepulturas planta
E em cada coração planta um cipreste!
Exulta o Eterno, e... tudo chora, tudo!
Quando Ela passa, semeando a Morte,
Todos dizem co’os olhos para a Sorte
– É o castigo de Deus que passa mudo!
– Fúlgido foco de escaldantes brasas
– O sol a segue, e a Peste ri-se, enquanto
Vai devastando o coração das casas...
E como o sol que a segue e deixa um rastro
De luz em tudo, ela, como o sol – o astro –
Deixa um rastro de luto em cada canto!
IDEAL
Quero-te assim, formosa entre as formosas
No olhar d’amor a mística fulgência
E o misticismo cândido das rosas
Plena de graça, santa de inocência!
Anjo de luz de astral aurifulgência,
Etéreo como as Willis vaporosas,
Embaladas no albor da adolescência,
– Virgens filhas das virgens nebulosas!
Quero-te assim, formosa, entre esplendores
Colmado o seio de virentes flores,
A alma diluída em etereais cismares...
Quero-te assim... e que bendita sejas
Como as aras sagradas das igrejas,
Como o Cristo sagrado dos altares!
CÍTARA MÍSTICA
Cantas... e eu ouço etérea cavatina!
Há nos teus lábios – dois sangrentos círios –
A gêmea florescência de dois lírios
Entrelaçados numa unção divina.
Como o santo levita dos Martírios,
Rendo piedosa dúlia peregrina
À tua doce voz que me fascina,
– Harpa virgem brandindo mil delírios!
Quedo-me aos poucos, penseroso e pasmo,
E a Noite afeia como num sarcasmo
E agora a sombra vesperal morreu...
Chegou a Noite... E para mim, meu anjo,
Teu canto agora é um salmodiar de arcanjo,
É a música de Deus que vem do Céu!
SÚPLICA NUM TÚMULO
Maria, eis-me a teus pés. Eu venho arrependido,
Implorar-te o perdão do imenso crime meu!
Eis-me, pois, a teus pés, perdoa o teu vencido,
Açucena de Deus, lírio morto do Céu!
Perdão! e a minha voz estertora um gemido,
E o lábio meu p’ra sempre apartado do teu
Não há de beijar mais o teu lábio querido!
Ah! quando tu morreste, o meu Sonho morreu!
Perdão, pátria da Aurora exilada do Sonho!
– Irei agora, assim, pelo mundo, para onde
Me levar o Destino abatido e tristonho...
Perdão! e este silêncio e esta tumba que cala!
Insânia, insânia, insânia, ah! ninguém me responde...
Perdão! e este sepulcro imenso que não fala!
AFETOS
Bendito o amor que infiltra n’alma o enleio
E santifica da existência o cardo,
– Amor que é mirra e que é sagrado nardo,
Turificando a languidez dum seio!
O amor, porém, que da Desgraça veio
Maldito seja, seja como o fardo
Desta descrença funeral em que ardo
E com que o fogo da paixão ateio!
Funambulescamente a alma se atira
À luta das paixões, e, como a Aurora
Que ao beijo vesperal anseia e expira,
Desce para a alma o ocaso da Carícia
Ora em sonhos de Dor, supremos, e ora
Em contorções supremas de Delícia!
MARTÍRIO SUPREMO
Duma Quimera ao fascinante abraço,
Por um Cocito ardente e luxurioso,
Onde nunca gemeu o humano passo,
Transpus um dia o Inferno Azul do Gozo!
O amor em lavas de candência d’aço,
Banhou-me o peito... Em ânsia de repouso,
Da Messalina fria no regaço,
Chora saudades do terreno pouso!
Como um mártir de estranho sacrifício,
Tinha os lábios crestados pela ardência
Da luz letal do grande Sol do Vício!
E mergulhei mais fundo no estuário...
Mas, no Inferno do Gozo, sem Calvário,
Cristo d’amor, morri pela Inocência!
SOMBRA IMORTAL
– E tu velas, a sós, no pó da fulgurância
Como uma velha cruz vela na sombra morta!
Fora, a noite é tumbal... e a saudade da infância,
Como um’alma de mãe, me acalenta e conforta!
Noite! E somente tu velas a rutilância...
Lua que já passou e que hoje ainda corta
O penetral que guia à derradeira estância,
O penetral que leva à derradeira porta!
Revejo em ti, mulher, num lânguido smorzando
A sombra virginal qu’eu adoro chorando
E há de um dia amparar-me na luta morrendo...
Ah! que um dia da Vida, estes dardos acúleos
Caiam, também da Dor, lá dos braços hercúleos,
Domados pela meiga Onfale a que me rendo!
CORAÇÃO FRIO
Frio e sagrado coração de lua,
Teu coração rolou da luz serena!
E eu tinha ido ver a aurora tua
Nos raios d’ouro da celeste arena...
E vi-te triste, desvalida e nua!
E o olhar perdi, ansiando a luz amena
No silêncio noctívago da rua...
– Sonâmbulo glacial de estranha pena!
Estavas fria! A neve que a alma corta
Não gele talvez mais, nem mais alquebre
um coração como a alma que está morta...
E estavas morta, eu vi, eu que te almejo,
– Sombra de gelo que me apaga a febre,
– Lua que esfria o sol do meu desejo!
NOTURNO
Para o vale noital da eterna gaza
Rolou o Sol – imenso moribundo –
E a noite veio na negrura d’asa,
Santificada pela Dor do Mundo!
U’a luz, entanto, no negror me abrasa,
E um canto vai morrer no vale fundo...
Que luz é esta que das brumas vaza,
Que canto é este, virginal, profundo?!
Rumores santos... e no santo harpejo,
Somente tristes os teus olhos vejo,
Para o Infinito e para o Céu voltados!
Cantas, e é noite de fatais abrolhos...
Choras, e no meu peito estes teus olhos
Como que cravam dois punhais gelados!
SEDUTORA
Alva d’aurora, e em lânguida sonata
Vinhas transpondo a margem do caminho,
Branca bem como empalecido arminho,
Alvorejando em arrebol de prata.
– Bendita a Santa do Carinho, inata!
E, ajoelhando à imagem do Carinho,
O roble altivo entreteceu-te um ninho,
Alva d’aurora, te acolheu a mata. –
Pérolas e ouro pela serrania...
No lago branco e rútilo do dia,
O azul pompeava para sempre vasto.
Chegaste, o seio branco, e, tu, chegando,
Uma pantera foi se ajoelhando,
Rendida ao eflúvio do teu seio casto!
PELO MUNDO
Ânsias que pungem, mórbidos encantos,
Crepitações de flamas incendidas
N’alma explodindo como fogos santos,
Vão pelo mundo ensanguentando as Vidas.
Eflúvios quentes e fatais quebrantos
Crestam a alma das virgens adormidas...
E as brumas velam nos sinistros mantos
E as virgens dormem nas tumbais jazidas!
Súbitos fremem ’spasmos derradeiros...
E a paixão morre e os corações coveiros
Vão como duendes pelos céus risonhos,
Chorando auroras, músicas perdidas,
Na estrada santa ensanguentando as Vidas,
Nos campos-santos enterrando os Sonhos!
SONETO
E o mar gemeu a funda melopeia
À luz feral que a tarde morta instila,
Triste como um soluço de Dalila,
Fria como um crepúsculo da Judeia.
Já Vésper, no Alto, e lânguida, cintila!
Naquela hora morria para a Ideia
A minha branca e desgraçada Deia,
Qual rosa branca que ao tufão vacila.
E o mar chamou-a para o fundo abismo!
E o céu chamou-a para o Misticismo.
Nesse momento a Lua vinha calma.
E céu e mar num desespero mudo
Não viram que num halo de veludo
À alma de Deia se evolava est’alma.
O RISO
“Ri, coração, tristíssimo palhaço.”
Cruz e Sousa
O Riso – o voltairesco clown – quem mede-o?!
– Ele, que ao frio alvor da Mágoa Humana,
Na Via-Láctea fria do Nirvana,
Alenta a Vida que tombou no Tédio!
Que à Dor se prende, e a todo o seu assédio,
E ergue à sombra da dor a que se irmana
Lauréis em sangue de volúpia insana,
Clarões de sonho em nimbos de epicédio!
Bendito sejas, Riso, clown da Sorte
– Fogo sagrado nos festins da Morte,
– Eterno fogo, saturnal do Inferno!
Eu te bendigo! No mundano cúmulo
És a Ironia que tombou no túmulo
Nas sombras mortas dum desgosto eterno!
SONETO
Vamos, querida! Já é Ave-Maria
– A hora dos tristes e dos descontentes.
Desfaz-se o peito em vibrações dormentes
E o Fado geme sob a névoa fria!
Que eu sinta n’alma o que tu n’alma sentes!
Nesta Missa de Atroz Melancolia
Bebes chorando o Vinho da Agonia!
– Consagração das almas padecentes!
Foi numa tarde assim que nos amamos.
Silfos morriam... No ar, os gaturamos
Num recesso de névoa, adormecida...
Punge-me o peito da Saudade o cardo,
Enquanto um mocho, sonolento e tardo,
Canta no espaço a maldição da vida.
A UMA MÁRTIR
Alma em cilício, vem, enrista a clava,
Brande no seio o espículo e o acinace
E unjam-te o seio que d’auroras nasce
Sangrentas bênçãos eclodindo em lava!
Nossa Senhora te unge a face escrava,
Cristo saudoso te abençoa a face,
Monja, – violeta que do Céu baixasse
À Virgem Santa Natureza brava!
Vais caminhando para a terra extrema,
Rosa dos sonhos! e o teu galho trema
E a tua crença, o desespero mate-a...
E em nuvens d’ouro ascende enfim ao plaustro
Da Neve Eterna, estrela azul do claustro
Levada para o Azul da Via-Láctea!
RÉGIO
Festa no paço! Noite... e no entretanto
Luzes, flores, clarões por toda a festa
E há nos régios salões, em cada aresta,
Credências d’ouro de supremo encanto.
No baldaquino a orquestra real se apresta
E o áureo dossel finge um relevo santo...
– Bissos egípcios d’alto gosto, a um canto,
Flordelisados de nelumbo e giesta.
Morreu a noite e veio o Sol Eterno
– Âmbar de sangue que desceu do Inferno
No turbilhão dos alvos raios diurnos...
Brilham no paço refulgências de elmo
E a princesa assomou como um santelmo
Na realeza branca dos coturnos.
PELO MAR
Manhã em flor. O mar é um policromo
E imenso lago d’íris e alabastros...
A aurora é branca e ao sol, o mar é como
Um pálio imenso que caiu dos astros.
Longe, bem longe, no alvoral assomo
Ergue um navio os altanados mastros
E o Oceano dorme – alourecido pomo,
Num leito irial de pérolas e nastros.
A alma da Mágoa vai pelo seu dorso,
Em sonhos geme... Um coração de corso
Geme no mar, vibra no mar, entanto,
Colma-lhe o seio a opala das esponjas...
E à noite morta, choram vagas – monjas –
Purificadas no cristal do pranto!
PALLIDA LUNA
És do Passado! Vieste d’alvorada
N’asa dos elfos pela Morte espalma...
Cantas... e eu ouço esta berceuse calma
Da harpa dos mundos ideais do Nada!
Ergue o Missal brilhante de tu’alma,
Mas nessa elevação mistificada,
Vem, que eu te espero, Deusa constelada,
Desce, anêmona exul que o Céu ensalma!
Venhas e desças, Lua dos Martírios,
Desças, mas venhas pela unção dos lírios,
Visão de Ocaso de enluaradas comas,
Vaso de Unção descido dos espaços,
Para ungirmos, nós dois, os nossos paços,
Na tule idealizada dos aromas!
A MORTE DE VÊNUS
Velhos berilos, pálidas cortinas,
Morno frouxel de nardos recendendo
Velam-lhe o sono... e Vênus vai morrendo
No berço azul das névoas matutinas!
Halos de luz de brancas musselinas
Vão-lhe do corpo virginal descendo
– Abelha irial que foi adormecendo
Sobre um coxim de pérolas divinas.
E quando o Sol lhe beija a espádua nua,
Cai-lhe da carne o resplendor da Lua
No reverbero dos deslumbramentos...
Enquanto no ar há sândalos, há flores
E haustos de morte – os últimos clangores
Da música chorosa dos mementos!
MÁRTIR DA FOME
Nesta da vida lúgubre caverna
De ossos e frios funerais que eu sinto
Como um chacal saciando o eterno instinto
Vou saciando a minha Fome Eterna...
– Fome de sangue dum Passado extinto,
De extintas crenças – bacanal superna,
Horrível assim como a Hidra de Lerna
E muda como o bronze de Corinto!
Ânsias de sonhos, desespero fundo!
E a alma que sonha no marnel do Mundo,
Morre de Fome pelas noites belas...
É como o Cristo – o Mártir do Calvário.
Morre. E no entanto vai para o estelário
Matar a Fome num festim de estrelas!
SONHO DE AMOR
Sobre o aromal e amplo coxim de Flora,
Que os vapores da tarde inda incensavam
E que um incenso tênue e bom vapora,
Os namorados lânguidos sonhavam.
A alma do Ocaso entrava o céu agora
E havia pelas tênebras que entravam
Ora estrangulamentos surdos, ora
Ruídos de carnes que se estrangulavam.
E sonharam assim durante toda
A noite, e toda a alva manhã durante!
– O Sol jorrava largos raios longos.
E em roda, víride e nevado, em roda,
Lembrava o campo um colorido ondeante
De vidros verdes e cristais oblongos!
SONETO
(A um poeta morto, aos 25 anos,
numa noite de orgia.)
A orgia mata a mocidade, quando
Rugem na Carne do delírio as feras,
E o moço morre como está sonhando
Nas suas vinte e cinco primaveras!
Em cima – o oiro sem mancha das esferas,
Embaixo oiro manchado de execrando
Festim dos sibaritas, das heteras
Lubricamente se despedaçando!
Em cima, a rede do estelário imáculo
Suspensa no alto como um tabernáculo
– A orgia, embaixo, e no delírio doudo
Como arvoredos juvenis tombados
Os moços mortos, os brasões manchados,
E um turbilhão de púrpuras no lodo!
FESTIVAL
Para Jônatas Costa
Címbalos soam no salão. O dia
Foge, e ao compasso de arrabis serenos
A valsa rompe, em compassados trenos
Sobre os veludos da tapeçaria.
Estatuetas de mármore de Lemnos
Estão dispostas numa simetria
Inconfundível, recordando a estria
Dos corpos níveos de Afrodite e Vênus.
Fulgem por entre mil cristais vermelhos
O alvo cristal dos nítidos espelhos
E a seda verde dos arbustos glabros,
E em meio às refrações verdes e hialinas,
Vibra, batendo em todas as retinas,
A incandescência irial dos candelabros.
Noturno
Chove. Lá fora os lampiões escuros
Semelham monjas a morrer... Os ventos
Desencadeados vão bater, violentos,
De encontro às torres e de encontro aos muros.
Saio de casa. Os passos mal seguros
Trêmulo movo, mas meus movimentos
Susto, diante do vulto dos conventos,
Negro, ameaçando os séculos futuros!
De São Francisco no plangente bronze
Em badaladas compassadas onze
Horas soaram... Surge agora a Lua.
E eu sonho erguer-me aos páramos etéreos
Enquanto a chuva cai nos cemitérios
E o vento apaga os lampiões da rua!
SONETO
Ao sétimo dia do seu falecimento
E ele morreu. Ele que foi um forte
Que nunca se quebrou pelo Desgosto
Morreu... mas não deixou na ara do rosto
Um só vestígio que acusasse a morte!
O anatomista que investiga a sorte
Das vidas que se abismam no Sol-posto
Ficaria admirado de seu rosto,
Vendo-o tão belo, tão sereno e forte!
Quando meu Pai deixou o lar amigo
Um sabiá da casa muito antigo
Que há muito tempo não cantava lá,
Diluiu o silêncio em litanias...
E hoje, poetas, fazem sete dias
Que eu ouço o canto desse sabiá!
VAE VICTIS
A Dor meu coração torça e retorça
E me retalhe como se retalha
Para escárnio e alegria da canalha
Um leão vencido que perdeu a força!
Sobre mim caia essa vingança corsa,
Já que perdi a última batalha!
E, enquanto o Tédio a carne me trabalha,
A Dor meu coração torça e retorça!
Cubra-me o corpo a podridão dos trapos!
Os vibriões, os vermes vis, os sapos
Encontrem nele pábulo eviterno...
– Repositório de milhões de miasmas
Onde se fartem todos os fantasmas
Primavera, verão, outono, inverno!
A DOR
Chama-se Dor, e quando passa, enluta
E todo mundo que por ela passa
Há de beber a taça da cicuta
E há de beber até o fim da taça!
Há de beber, enxuto o olhar, enxuta
A face, e o travo há de sentir, e a ameaça
Amarga dessa desgraçada fruta
Que é a fruta amargosa da Desgraça!
E quando o mundo todo paralisa
E quando a multidão toda agoniza,
Ela, inda altiva, ela, inda o olhar sereno,
De agonizante multidão rodeada,
Derrama em cada boca envenenada
Mais uma gota do fatal veneno!
TERRA FÚNEBRE
Aqui morreram tantos poetas! Tanta
Guitarra morta este lugar encerra!..
Aqui é o Campo-Santo, aqui é a Terra
Em que a alma chora e em que a Saudade canta!
O caminheiro que o Pesar desterra,
Pare chorando nesta Terra Santa,
E se cantar como a Saudade canta
O caminheiro fique nesta Terra!
À noite aqui um trovador eterno
Chora, abraçado às campas dos poetas,
– Esse sombrio trovador é o Inverno!
Aqui é a Terra, onde, ao noturno açoite,
Carpem na sombra pássaros ascetas,
Gemem poetas – pássaros da Noite!
SONETO
O sonho, a crença e o amor, sendo a risonha
Santíssima Trindade da Ventura,
Pode ser venturosa a criatura
Que não crê, que não ama e que não sonha?!
Pois a alma acostumada a ser tristonha
Pode achar por acaso ou porventura
Felicidade numa sepultura,
Contentamento numa dor medonha?!
Há muito tempo, o sonho, do meu seio
Partiu num célere arrebatamento
De minha crença arrebentando a grade,
Poi se eu não amo e se também não creio,
De onde me vem este contentamento,
De onde me vem esta felicidade?!
MEDITANDO
Para o Celso Mariz
Penso em venturas! A alma do homem pensa
Sempre em venturas! Sorte do homem! O homem
Há de embalar eternamente a Crença
Sem ter grilhões e sem ter leis que o domem!
Punjam-no os vermes da Desgraça, assomem
Descrenças, surjam tédios na Descrença,
Luta, e morrem os vermes que o consomem,
Vence, e por fim, nada há que o abata e o vença!
Por isso, poeta, eu penso na Ventura!
E o pensamento, na Suprema Altura
Sinto, no imenso Azul do Firmamento
Ir rolando pelo ouro das estrelas,
E esse ouro santo vir rolando pelas
Trevas profundas do meu pensamento!
Para quem tem na vida compreendido
Toda a grandeza da Fraternidade
O aniversário dum irmão querido
A alma de alegres emoções invade.
Depois quando no irmão estremecido
Fazem aliança o gênio e a probidade,
Atinge o amor um grau nunca atingido
No termômetro santo da Amizade.
O Alexandre dos Anjos merecia
Grandes coroas nesse grande dia,
Tesouros reais, auríferos tesouros...
Terá no entanto indubitavelmente
A admiração do século presente
E a sagração dos séculos vindouros!
[2] Em epígrafe: “(Feito no decurso de dois minutos, em homenagem ao aniversário natalício de Alexandre Rodrigues dos Anjos – 28 de abril de 1905.)” (N.E.)
SONETO
A Frederico Nietzsche
Para que nesta vida o espírito esfalfaste
Em vãs meditações, homem meditabundo?!
– Escalpelaste todo o cadáver do mundo
E, por fim, nada achaste... e, por fim, nada achaste!...
A loucura destruiu tudo que arquitetaste
E a Alemanha tremeu ao teu gemido fundo!...
De que te serviu, pois, estudares, profundo,
O homem e a lesma e a rocha e a pedra e o carvalho e a haste?!
Pois, para penetrar o mistério das lousas,
Foi-te mister sondar a substância das cousas
– Construíste de ilusões um mundo diferente,
Desconheceste Deus no vidro do astrolábio
E quando a Ciência vã te proclamava sábio,
A tua construção quebrou-se de repente!
O NEGRO
Oh! Negro, oh! filho da Hotentótia ufana,
Teus braços brônzeos como dois escudos,
São dois colossos, dois gigantes mudos,
Representando a integridade humana!
Nesses braços de força soberana
Gloriosamente à luz do sol desnudos
Ao bruto encontro dos ferrões agudos
Gemeu por muito tempo a alma africana!
No colorido dos teus brônzeos braços,
Fulge o fogo mordente dos mormaços
E a chama fulge do solar brasido...
E eu cuido ver os múltiplos produtos
Da Terra – as flores e os metais e os frutos
Simbolizados nesse colorido!
Soneto
À memória do meu colega Caldas Lins
Vinhas trilhando gárrulo a Avenida
Onde Deus manda que todo homem goze,
Quando o fantasma da tuberculose
Pediu-te, em ânsias, o óbolo da Vida!
Recordo agora a nossa despedida
Na Estação do Cobé – santa nevrose
que com fios de ferro as almas cose
Principalmente se uma está ferida!
Das tuas dores na procela brava
Não soubeste talvez que eu te estimava!
Mas a amizade oculta não se finda...
Embora oculta, ela subiu, no entanto...
E subiu tanto e subiu tanto e tanto
Que hoje que és morto – ei-la que sobe ainda!
Pau d’Arco – 1905.
O ÉBRIO
Bebi! Mas sei por que bebi!... Buscava,
Em verdes nuanças de miragem, ver
Se nesta ânsia suprema de beber
Achava a Glória que ninguém achava!
E todo o dia então eu me embriagava
– Novo Sileno – em busca de ascender
A essa Babel fictícia do Prazer
Que procuravam e que eu procurava.
Trás de mim, na atra estrada que trilhei
Quantos também, quantos também deixei!
Mas eu não contarei nunca a ninguém,
A ninguém nunca eu contarei a história
Dos que, como eu, foram buscar a Glória
E que, como eu, irão morrer também!
Pau d’Arco – 1905.
O Canto da Coruja
A coruja cantara-lhe na porta
Sinistramente a noite inteira! Indício
Mais certo não havia! – Era o suplício!...
Daí a pouco, ela seria morta.
Saiu. O Sol ardia. A estrada torta
Lembrava a antiga ponte de Sublício...
Havia pelo chão um desperdício
De folhas que a áurea xantofila corta.
Nisto, ouve o canto aziago da coruja!
– Quer fugir, e não vê por onde fuja –
Implora a Deus como a um fetiche vago...
– Se ao menos voasse! – E o horror começa! Rasga
As vestes; uma convulsão a engasga
E morre ouvindo o mesmo canto aziago!
Pau d’Arco – 1905.
Senectude Precoce
Envelheci. A cal da sepultura
Caiu por sobre a minha mocidade...
E eu que julgava em minha idealidade
Ver inda toda a geração futura!
Eu que julgava! Pois não é verdade?!
Hoje estou velho.
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