Olha essa neve pura!
– Foi saudade? Foi dor? – Foi tanta agrura
Que eu nem sei se foi dor ou foi saudade!
Sei que durante toda a travessia
Da minha infância trágica, vivia,
Assim como uma casa abandonada
Vinte e quatro anos em vinte e quatro horas...
Sei que na infância nunca tive auroras
E afora disto, eu já nem sei mais nada!
Pau d’Arco – 1905.
André Chénier
Na real magnificência dos gigantes,
Grave como um lacedemônio harmoste
André Chénier ia subir ao poste
A que Luís XVI subira dantes!
Que a sua morte a homem nenhum desgoste
E incite o heroísmo das nações distantes...
Por isso, ele a morrer, canta vibrantes
Versos divinos que arrebatam a hoste.
Não há quem nele um só tremor denote!
– Continua a cantar, a alma serena...
Mas, de repente, pressentindo a lousa,
Batendo com a cabeça no barrote
Da guilhotina, diz ao povo: “É pena!
– Aqui ainda havia alguma cousa...”
Pau d’Arco – 1905.
Mystica Visio
Vinha passando pelo meu caminho
Um vulto estranhamente iluminado...
Para onde eu ia, o vulto ia a meu lado
E desde então, não andei mais sozinho!
Abraçou-me, beijou-me com um carinho
Que a um ser divino não seria dado...
E eu me elevava, sendo assim beijado,
Muito acima do humano burburinho!
Falou-me de ilusões e de luares,
Da tribo alegre que povoa os ares...
– Assombrava-me aquela claridade!
Mas através daquelas falsas luzes
Pude rever enfim todas as cruzes
Que têm pesado sobre a Humanidade!
Pau d’Arco – 1905.
GOZO INSATISFEITO
Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento
De minha mocidade, experimento
O mais profundo e abalador atrito...
Queimam-me o peito cáusticos de fogo,
Esta ânsia de absoluto desafogo
Abrange todo o círculo infinito.
Na insaciedade desse gozo falho
Busco no desespero do trabalho,
Sem um domingo ao menos de repouso,
Fazer parar a máquina do instinto,
Mas, quanto mais me desespero, sinto
A insaciabilidade desse gozo!
Pau d’Arco – 1906.
DOLÊNCIAS
Oh! Lua morta de minha vida,
Os sonhos meus
Em vão te buscam, andas perdida
E eu ando em busca dos rastos teus...
Vago sem crenças, vagas sem norte,
Cheia de brumas e enegrecida,
Ah! Se morreste pra minha vida!
Vive, consolo de minha morte!
Baixa, portanto, coração ermo
De lua fria
À plaga triste, plaga sombria
Dessa dor lenta que não tem termo.
Tu que tombaste no caos extremo
Da Noite imensa do meu Passado,
Sabes da angústia do torturado...
Ah! Tu bem sabes por que é que eu gemo!
Instilo mágoas saudoso, e enquanto
Planto saudades num campo morto,
Ninguém ao menos dá-me um conforto,
Um só ao menos! E no entretanto
Ninguém me chora! Ah! Se eu tombar
Cedo na lida...
Oh! Lua fria vem me chorar,
Oh! Lua morta da minha vida!
IDEALIZAÇÕES
A Santos Neto
I
Em vão flameja, rubro, ígneo, sangrento
O sol, e, fulvos, aos astrais desígnios,
Raios flamejam e fuzilam, ígneos,
Nas chispas fulvas de um vulcão violento!
É tudo em vão! Atrás da luz dourada,
Negras, pompeiam (triste maldição!)
– Asas de corvo pelo coração...
– Crepúsculo fatal vindo do Nada!
Que importa o Sol! A Treva, a Sombra – eis tudo!
E no meu peito – condensada treva –
A sombra desce, e o meu pesar se eleva
E chora e sangra, mudo, mudo, mudo...
E há no meu peito – ocaso nunca visto,
Martirizado porque nunca dorme
As Sete Chagas dum martírio enorme,
E os Sete Passos que magoaram Cristo!
II
Agora dorme o astro de sangue e de ouro
Como um sultão cansado! As nuvens, como
Odaliscas, da Noite ao negro assomo
Beijam-lhe o corpo ensanguentado d’ouro.
Legiões de névoas mortas e finadas
Como fragmentações d’ouro e basalto
Lembram guirlandas pompeando no Alto
Eterizadas, volatilirizadas.
E a Noite emerge, santa e vitoriosa
Dentre um velarium de veludos. Atros
Descem os nimbos... No ar há malabatros
Turiferando a negridão tediosa.
Além, dourando as névoas dos espaços,
Na majestade dum condor bendito,
Subindo à majestade do Infinito,
A Via-Láctea vai abrindo os braços!
Áureas estrelas, alvas, luminosas,
Trazem no peito o branco das manhãs
E dormem brancas como leviatãs
Sobre o oceano astral das nebulosas.
Eu amo a noite que este Sol arranca!
Namoro estrelas... Sírius me deslumbra,
Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra
A imagem lirial da Noite Branca.
III
De novo, a Aurora, entre esplendores, há-de
Alva, se erguer, como tombou outrora,
E como a Aurora – o Sol – hóstia da Aurora,
Abençoada pela Eternidade!
E ei-lo de novo, ontem moribundo,
Hoje de novo, curvo ao seu destino,
Fantástico, ciclópico, assassino
Ébrio de fogo, dominando o mundo!
Mas de que serve o Sol, se triste em cada
Raio que tomba no marnel da terra,
Mais em meu peito uma ilusão se enterra,
Mais em minh’alma um desespero brada?!
De que serve, se, à luz áurea que dele
Emana e estua e se refrange e ferve,
A Mágoa ferve e estua, de que serve
Se é desespero e maldição todo ele?!
Pois, de que serve, se, aclarando os cerros
E engalanando os arvoredos gaios,
A alma se abate, como se esses raios
N’alma caindo, se tornassem ferros?!
IV
Poeta, em vão na luz do Sol te inflamas,
E nessa luz queimas-te em vão! És todo
Pó, e hás de ser após as chamas, lodo,
Como Herculanum foi após as chamas.
Ah! Como tu, em lodo tudo acaba,
O leão, o tigre, o mastodonte, a lesma,
Tudo por fim há de acabar na mesma
Tênebra que hoje sobre ti desaba.
Ninguém se exime dessa lei imensa
Que, em plena e fulva reverberação,
Arrasta as almas pela Escuridão,
E arrasta os corações pela Descrença.
Ergue, pois, poeta, um pedestal de tanta
Treva e dor tanta, e num supremo e insano
E extraordinário e grande e sobre-humano
Esforço, sobe ao pedestal, e... canta!
Canta a Descrença que passou cortando
As tuas ilusões pelas raízes,
E em vez de chagas e de cicatrizes
Deixar, foi valas funerais deixando.
E foi deixando essas funéreas, frias,
Medonhas valas, onde, como abutres
Medonhos, de ossos, de ilusões te nutres,
Vives de cinzas e de ruinarias!
V
Agora é noite! E na estelar coorte,
Como recordação da festa diurna,
Geme a pungente orquestração noturna
E chora a fanfarra triunfal da Morte.
Então, a Lua que no céu se espalha,
Iluminando as serranias, banha
As serranias duma luz estranha,
Alva como um pedaço de mortalha!
Nessa música que a alma me ilumina
Tento esquecer as minhas próprias dores,
Canto, e minh’alma cobre-se de flores
– Fera rendida à música divina.
Harpas concertam! Brandas melodias
Plangem... Silêncio! Mas de novo as harpas
Reboam pelo mar, pelas escarpas,
Pelos rochedos, pelas penedias...
Eu amo a Noite que este Sol arranca!
Namoro estrelas... Sírius me deslumbra,
Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra
A imagem lirial da Noite Branca!
A VITÓRIA DO ESPÍRITO
Era uma preta, funeral mesquita,
Abandonada aos lobos e aos leopardos
Numa floresta lúgubre e esquisita.
Engalanava-lhe as paredes frias
Uma coroa de urzes e de cardos
Coberta em pálio pelas laçarias.
Uma vez, aos lampejos derradeiros
Das irisadas vespertinas velas,
Feras rompiam tojos e balseiros.
E, pelas catacumbas desprezadas,
Mochos vagavam como sentinelas,
Em atalaia às gerações passadas!
Um crepúsculo imenso nunca visto
Tauxiava o Céu de grandes vidros roxos
Da mesma cor da túnica de Cristo.
Fulgia em tudo uma estriação violeta
E um violáceo clarão banhava os mochos
Que em torno estavam da mesquita preta.
Já na iminência da amplidão sidérea
Como uma umbela, se desenrolava
A esteira astral da retração etérea.
Os astros mortos refulgiam vivos
E a noite, ampla e brilhante, rutilava
Lantejoulada de opalinos crivos.
Súbito alguém, o passo constrangendo,
Parou em frente da mesquita morta...
– Um vento frio começou gemendo.
Era uma viúva, e o olhar errante, a viúva,
Em passo lento, foi transpondo a porta,
Eternamente aberta ao sol e à chuva.
A Lua encheu o espaço sem limites
E, dentro, nos altares esboroados,
Foram caindo como estalactites
Sobre o ouro e a prata das alfaias priscas
Um dilúvio de fósforos prateados
E uma chuva dourada de faíscas.
Fora, entretanto, por um chão de onagras
Vinha passeando como numa viagem
Um grupo feio de panteras magras.
E havia no atro olhar dessas panteras
Essa alegria doida da carnagem
Que é a alegria única das feras.
E ardendo na impulsão das ânsias doudas
E em sevas fúrias, infernais ardendo
Todas as feras, as panteras todas
Avançam para a viúva desvalida.
E raivosas, contra ela, arremetendo,
Tiram-lhe todas ali mesmo a vida.
Morria a noite. As flâmulas altivas
Do sol nascente erguiam-se vermelhas,
Como uma exposição de carnes vivas.
E iam cair em pérolas de sangue
Sobre as asas doiradas das abelhas,
E sobre o corpo da viúva exangue.
A Natureza celebrava a festa
Do astro glorioso em cantos e baladas
– O próprio Deus cantava na floresta!
Nos arvoredos rejuvenescidos,
Estrugiam canções desesperadas
De misereres e de sustenidos.
Além, entanto, na redoma clara
Que envolve a porta da região etérea,
O espírito da viúva se quedara
Ao contemplar dessa fulgente porta
E dessa clara e alva redoma aérea,
No desfilar de sua carne morta
A transitoriedade da matéria!
CANTO ÍNTIMO
Meu amor, em sonhos, erra,
Muito longe, altivo e ufano
Do barulho do oceano
E do gemido da terra!
O Sol está moribundo.
Um grande recolhimento
Preside neste momento
Todas as forças do Mundo.
De lá, dos grandes espaços,
Onde há sonhos inefáveis
Vejo os vermes miseráveis
Que hão de comer os meus braços.
Ah! Se me ouvisses falando!
(E eu sei que às dores resistes)
Dir-te-ia coisas tão tristes
Que acabarias chorando.
Que mal o amor me tem feito!
Duvidas?! Pois, se duvidas,
Vem cá, olha estas feridas,
Que o amor abriu no meu peito.
Passo longos dias, a esmo...
Não me queixo mais da sorte
Nem tenho medo da Morte
Que eu tenho a Morte em mim mesmo!
“Meu amor, em sonhos, erra,
Muito longe, altivo e ufano
Do barulho do oceano
E do gemido da terra!”
A LUVA
Para o Augusto Belmont
Pensa na glória! Arfa-lhe o peito, opresso.
– O pensamento é uma locomotiva –
Tem a grandeza duma força viva
Correndo sem cessar para o Progresso.
Que importa que, contra ele, horrendo e preto
O áspide abjeto do Pesar se mova!...
E só, no quadrilátero da alcova,
Vem-lhe à imaginação este soneto:
“A princípio escrevia simplesmente
Para entreter o espírito... Escrevia
Mais por impulso de idiossincrasia
Do que por uma propulsão consciente.
Entendi, depois disso, que devia,
Como Vulcano, sobre a forja ardente
Da Ilha de Lemnos, trabalhar contente,
Durante as vinte e quatro horas do dia!
Riam de mim, os monstros zombeteiros.
Trabalharei assim dias inteiros,
Sem ter uma alma só que me idolatre...
Tenha a sorte de Cícero proscrito
Ou morra embora, trágico e maldito,
Como Camões morrendo sobre um catre!”
Nisto, abre, em ânsias, a tumbal janela
E diz, olhando o céu que além se expande:
“ – A maldade do mundo é muito grande,
Mas meu orgulho ainda é maior do que ela!
Ruja a boca danada da profana
Coorte dos homens, com o seu grande grito,
Que meu orgulho do alto do Infinito
Suplantará a própria espécie humana!
Quebro montanhas e aos tufões resisto
Numa absoluta impassibilidade!”,
E como um desafio à eternidade
Atira a luva para o próprio Cristo!
Chove. Sobre a cidade geme a chuva,
Batem-lhe os nervos, sacudindo-o todo,
E na suprema convulsão o doudo
Parece aos astros atirar a luva!
À CARIDADE
No universo a caridade,
Em contraste ao vício infando,
É como um astro brilhando
Sobre a dor da humanidade!
Nos mais sombrios horrores
Por entre a mágoa nefasta
A caridade se arrasta
Toda coberta de flores!
Semeadora de carinhos,
Ela abre todas as portas
E no horror das horas mortas
Vem beijar os pobrezinhos.
Torna as tormentas mais calmas,
Ouve o soluço do mundo
E dentro do amor profundo
Abrange todas as almas.
O céu de estrelas se veste
E em fluidos de misticismo
Vibra no nosso organismo
Um sentimento celeste.
A alegria mais acesa
Nossas cabeças invade...
Glória, pois, à Caridade
No seio da Natureza!
Estribilho
Cantemos todos os anos
Na festa da Caridade
A solidariedade
Dos sentimentos humanos.
ILUSÃO
Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes mostram ser felizes!
Assim, em Tebas – a tumbal cidade,
A múmia de um herói do tempo de Ísis,
Ostenta ainda as mesmas cicatrizes
Que eternizaram sua heroicidade!
Quem vê o herói, inda com o braço altivo,
Diz que ele não morreu, diz que ele é vivo,
E, persuadido fica do que diz...
Bem como tu, que nessa crença infinda
Feliz me viste no Passado, e ainda
Te persuades de que sou feliz.
Pau d’Arco – 1905.
NOME MALDITO
Das trombetas proféticas o alarde
Falou-lhe, por seus onze augúrios certos:
– “É maldito o teu nome! E, aos céus abertos,
Não há divina proteção que o guarde!”
Dúvidas cruéis! Momentos cruéis! Incertos
E cruéis momentos! Ânsias cruéis! E, à tarde,
Saiu aos tombos, como um cão covarde
A percorrer desertos e desertos...
E, assombrado, com medo do Infinito,
Por toda a parte, onde, aos tropeços, ia,
Por toda a parte viu seu nome escrito!
Vieram-lhe as ânsias. Teve sede e fome...
E foi assim que ele morreu um dia
Amaldiçoado pelo próprio nome!
Pau d’Arco – 1906.
Dolências
Eu fui cadáver, antes de viver!...
– Meu corpo, assim como o de Jesus Cristo,
Sofreu o que olhos de homem não têm visto
E olhos de fera não puderam ver!
Acostumei-me, assim, pois, a sofrer
E acostumado a assim sofrer, existo...
Existo!... – E apesar disto, apesar disto
Inda cadáver hei também de ser!
Quando eu morrer de novo, amigos, quando
Eu, de saudades me despedaçando,
De novo, triste e sem cantar, morrer,
Nada se altere em sua marcha infinda
– O tamarindo reverdeça ainda,
A lua continue sempre a nascer!
Pau d’Arco – 1906.
AVE LIBERTAS
Ao clarão irial da madrugada,
Da liberdade ao toque alvissareiro,
Banhou-se o coração do Brasileiro
Num eflúvio de luz auroreada.
É que baqueia a vida escravizada!
Já se ouvem os clangores do pregoeiro,
Como um Tritão, levando ao mundo inteiro,
Da República a nova sublimada.
E ali, do despotismo entre os escombros,
Rola um drama que a Pátria exalça e doura
Numa auréola de paz imorredoura,
A República rola-lhe nos ombros;
Enquanto fora na trevosa agrura
Sucumbe o servilismo, e, esplendorosa,
A Liberdade assoma majestosa,
– Estrela d’Alva imaculada e pura!
É livre a Pátria outrora opressa e exangue!
Esse labéu que mancha a glória pública,
Que apouca o triunfo e que se chama sangue,
Manchar não pôde as aras da República.
Não! que esse ideal puro, risonho,
Há de transpor sereno os penetrais
Da Pátria, e há de elevar-se neste sonho
Ao topo azul das Glórias Imortais!
Esplende, pois, oh! Redentora d’alma,
Oh! Liberdade, essa bendita e branca
Luz que os negrores da opressão espanca,
Essa luz etereal bendita e calma.
Vós, oh Pátria, fazei que destes brilhos,
Caia do santuário lá da História,
Fulgente do valor da vossa glória,
A bênção do valor dos vossos filhos!
QUADRAS
Embala-me em teus braços,
De amores bons à sombra –
Quero em cheirosa alfombra
Pousar os sonhos lassos!
Teus seios, oh! morena
– Relíquias de Carrara –
Têm a ambrosia rara
Da mais rara verbena.
Aperta-me em teu peito,
E dá-me assim, divina,
De lírios e bonina
Um veludíneo leito.
Assim como Jesus,
Eu quero o meu Calvário
– Anelo morrer vário
Dos braços teus na Cruz!
Por que não me confortas?!
Bem sei, perdeste a olência,
Morreu-te a redolência,
Alma das virgens mortas –
Mas não! Apaga os traços
De tão funesto aspeito...
Aperta-me em teu peito,
Embala-me em teus braços!
VÊNUS MORTA
A Via-Sacra Azul do amor primeiro
Veste hoje o luto que a desgraça veste
No miserere do meu desespero...
– Lótus diluído n’alma dum cipreste!
Como um lilás eternizando abrolhos
Tinge de roxo o arminho da grinalda,
Rola a violeta santa dos teus olhos
– Tufos de goivo em conchas de esmeralda.
No vácuo imenso das desesperanças
E dos passados viços,
Recordo o beijo que te dei nas tranças
Emolduradas num florão de riços.
E como um nume de pesar, plangente,
Guarda a saudade que levou do Marne,
Eu guardo o travo deste beijo ardente
E a Nostalgia desta Pátria – a Carne!
Sonho abraçar-te, pálida camélia,
Mas neste sonho, langue e seminua,
Pareces reviver a antiga Ofélia,
À opalescência trágica da lua!
Tu, oh! Quimera, de reverberantes
E rubras asas de heliantos pulcros,
Crava-lhe n’alma o tirso das bacantes,
Brande-lhe n’alma o frio dos sepulcros.
Reza-lhe todo o cantochão memento
Dessa Missa de amor da Extrema Agrura,
Abençoada pelo meu tormento
E consagrada pela sepultura.
E que ela suba na serena gaza
Dos mistérios dourados e serenos
À terra Ideal das púrpuras em brasa
E ao Céu dourado e auroreal de Vênus!
ODE AO AMOR
Enches o peito de cada homem, medras
N’alma de cada virgem, e toda a alma
Enches de beijos de infinita calma...
E o aroma dos teus beijos infinitos
Entra na terra, bate nos granitos
E quebra as rochas e arrebenta as pedras!
És soberano! Sangras e torturas!
Ora, tangendo tiorbas em volatas,
Cantas a Vida que sangrando matas,
Ora, clavas brandindo em seva e insana
Fúria, lembras, Amor, a soberana
Imagem pétrea das montanhas duras.
Beijam-te o passo as multidões escravas
Dos Desgraçados! – Estas multidões
Sonham pátrias douradas de ilusões
Entre os tórculos negros da Desgraça
– Flores que tombam quando a neve passa
No turbilhão das avalanches bravas!
Tudo dominas! – Dos vergéis tranquilos
Aos Capitólios, e dos Capitólios
Aos claros, pulcros e brilhantes sólios
De esplendor pulcro e de fulgências claras,
Rendilhados de fulvas gemas raras
E pontilhados de crisoberilos.
Sobes ao monte onde o edelweiss pompeia
N’alma do que subiu àquele monte!
Mas, vezes, desces ao segredo insonte
Do mar profundo onde a sereia canta
E onde a Alcíone trêmula se espanta
Ouvindo a gusla crebra da sereia!
Rompe a manhã. Sinos além bimbalham.
Troa o conúbio dos amores velhos
– As borboletas e os escaravelhos
Beijam-se no ar... Retroa o sino! E, quietos,
Beijam-se além os silfos e os insetos
Sob a esteira dos campos que se orvalham.
E em tudo estruge a tua dúlia – dúlia
Que na fibra mais forte e até na fibra
Mais tênue, chora e se lamenta e vibra...
E em cada peito onde um Ocaso chora
Levanta a cruz da redenção da Aurora
Como a Judite a redimir Betúlia!
Bem haja, pois, esse poder terrível,
– Essa dominação aterradora
– Enorme força regeneradora
Que faz dos homens um leão que dorme
E do Amor faz uma potência enorme
Que vela sobre os homens, impassível!
Esta de amor ode queixosa, Irene,
Quedo, sonhei-a, aos astros, ontem, quando
Entre estrias de estrelas, fosforeando,
Egrégia estavas no teu plaustro egrégio
Mais bela do que a Virgem de Corrégio
E os quadros divinais de Guido Reni!
Qual um crente em asiático pagode,
Entre timbales e anafis estrídulos,
Cativo, beija os áureos pés dos ídolos,
Assim, Irene, eis-me de ti cativo!
Cativaste-me, Irene, e eis o motivo,
Eis o motivo por que fiz esta ode.
A Lágrima
– Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Clorureto de sódio, água e albumina...
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!
– “A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina. –”
– O farmacêutico me obtemperou. –
Vem-me então à lembrança o pai Ioiô
Na ânsia psíquica da última eficácia...
E logo a lágrima em meus olhos cai.
Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!
Paraíba – 1909.
CANTO DE AGONIA
Agonia de amor, agonia bendita!
– Misto de infinita mágoa e de crença infinita.
Nos desertos da Vida uma estrela fulgura
E o Viajeiro do Amor, vendo-a, triste, murmura:
– Que eu nunca chore assim! Que eu nunca chore como
Chorei, ontem, a sós, num volutuoso assomo,
Numa prece de amor, numa delícia infinda,
Delícia que ainda gozo, oração, prece que ainda
Entre saudades rezo, e entre sorrisos e entre
Mágoas soluço, até que esta dor se concentre
No âmago de meu peito e de minha saudade.
Amor, escuridão e eterna claridade...
– Calor que hoje me alenta e há de matar-me em breve,
Frio que me assassina, amor e frio, neve,
Neve que me embala como um berço divino,
Neve da minha dor, neve do meu destino!
E eu aqui a chorar nesta noite tão fria!
Agonia, agonia, agonia, agonia!
– Diz e morre-lhe a voz, e cansado e morrendo
Viajeiro vai, e vê a luz e vendo
Uma sombra que passa, uma nuvem que corre,
Caminha e vai, o louco, abraça a sombra e... morre!
E a alma se lhe dilui na amplidão infinita...
Agonia de amar, agonia bendita!
HISTÓRIA DE UM VENCIDO
Sol alto. A terra escalda: é um forno. A flama oriunda
Da solar refração bate no mundo, acende
O pó, aclara o mar e por tudo se estende
E arde em tudo, mordendo a atra terra infecunda.
E o Velho veio para o labor cotidiano,
Triste, do alegre Sol ao grande globo quente
E pôs-se para aí, desoladoramente
A revolver da terra o atro e infecundo arcano.
Por seis horas seu braço empenhado na luta,
Fez reboar pelo solo, alta e descompassada
A dura vibração incômoda da enxada,
Rasgando, do agro solo, a superfície bruta.
Mas o braço cansou! Trabalhou... e o trabalho
– Do Eterno Bem motor principal e alavanca –
Arrancara-lhe a Crença assim como se arranca
De um ninho a seda branca e de uma árvore o galho!
Sangrou-lhe o coração a saudade da Aurora!
– O Hércules que ele fora! O fraco que ele hoje era!
E surpreendido viu que um abismo se erguera
Entre o fraco que era hoje, e entre o Hércules de outrora!
Pois havia de, assim, nesta maldita senda
De sofrimento ignaro em sofrimento ignaro
Ir caminhando até tombar sem um amparo
No tremendo marnel da Desgraça tremenda?!
II
Noite! O silêncio vinha entrando pelo mundo
E ele, lúgubre e só, trôpego e cambaleando
Foi-se arrastando, foi aos poucos se arrastando,
Para as bordas fatais dum precipício fundo!
Quis um momento ainda olhar para o Passado...
E em tudo que o rodeava, oito vezes, funéreo,
Horrorizado viu como num cemitério
Cadáveres de um lado e cinzas de outro lado!
De súbito, avistando uma frondosa tília
Julgou, louco, avistar a Árvore da Esperança...
E bateram-lhe então de chofre na lembrança
A casa que deixara, os filhos, a família!
Não morreria, pois! Somente morreria
Se da Vida, sozinho, ele pisasse os trilhos...
Que mal lhe haviam feito a esposa e a irmã e os filhos?!
Preciso era viver! Portanto, viveria!
Viveria! E a fecunda e deleitosa seara
Verde dos campos, onde arde e floresce a Crença,
Compensaria toda a sua dor imensa
Tal qual o Céu a dor de Cristo compensara!
E aos tropeços, tombando, o Velho caminhava...
Caminhava, e a sonhar, bêbado de miragem,
Nem viu que era chegado o termo da viagem,
E amplo, a rugir-lhe aos pés, o precipício estava.
Num instante viu tudo, e compreendendo tudo,
Quis fazer um esforço – o último esforço, e o braço
Pendeu exangue, o peito arqueou-se, o cansaço
Empolgara-o, e ele quis falar e estava mudo!
Mudo! E a quem contaria agora as suas mágoas?!
E trágico, no horror bruto da despedida
Abraçou-se com a Dor, abraçou-se com a Vida
E sepultou-se ali no coração das águas!
Cantavam muito ao longe uns carmes doloridos!
Eram tropeiros, era a turba trovadora
Que assim cantava, enquanto a Terra Vencedora
Celebrava ao luar a Missa dos Vencidos!
E o cadáver, à toa, a flux d’água, flutua!
Ninguém o vê, ninguém o acalenta, o acalenta...
Somente entre a negrura atra da terra poenta
Alguém beija, alguém vela o cadáver: a Lua!
ESTROFES SENTIDAS
Eu sei que o Amor enche o Universo todo
E se prende dos poetas à guitarra
Como o pólipo que se agarra ao lodo
E a ostra que às rochas eternais se agarra.
O amor reduz-nos a uniformes placas,
Uniformiza todos os anelos
E une organizações fortes e fracas
Nos mesmos laços e nos mesmos elos.
Por muito tempo eu lhe sorvi o aroma,
E, desvairado, sem prever o abismo,
Fiz desse amor um ídolo de Roma,
Eleito Deus no altar do fetichismo!
Tudo sacrifiquei para adorá-lo
– Mas hoje, vendo o horror dos meus destroços,
Tenho vontade de estrangulá-lo
E reduzi-lo muitas vezes a ossos!
Todo o ser que no mundo turbilhona
Vejando Amor, à luz das minhas frases,
Uma montanha que se desmorona,
Estremecendo em suas próprias bases.
E em qualquer parte do Universo veja –
Sombrias ruínas de um solar egrégio
E o desmoronamento duma Igreja
Despedaçada pelo sacrilégio.
A Natureza veste extraordinárias
Roupagens de ouro. Além, nas oliveiras,
Aves de várias cores e de várias
Espécies, cantam óperas inteiras.
A compreensão da minha niilidade
Aumenta à proporção que aumenta o dia
E pouco a pouco o encéfalo me invade
Numa clareza de fotografia.
Na área em que estou, ao matinal assomo,
Passa um rebanho de carneiros dóceis...
E o Sol arranca as minhas crenças como
Boucher de Perthes arrancava fósseis.
Observo então a condição tristonha
Da Humanidade, ébria de fumo e de ópio,
Tal qual ela é, e não tal qual a sonha
E a vê o Sábio pelo telescópio.
O Sábio vê em proporções enormes
Aquilo que é composto de pequenas
Partes, construindo corpos quase informes
Daquilo que é uma parcela apenas.
Da observação nos elevados montes
Prefiro, à nitidez real dos aspectos,
Ver mastodontes onde há mastodontes
E insetos ver onde há somente insetos.
A inanidade da Ilusão demonstro
Mas, demonstrando-a, sinto um violento
Rancor da Vida – este maldito monstro
Que no meu próprio estômago alimento!
Nisto a alma o ofício da Paixão entoa
E vai cair, heroicamente, na água
Da misteriosíssima lagoa
Que a língua humana denomina Mágoa!
Dos meus sonhos o exército desfila
E, à frente dele, eu vou cantando a nênia
Do Amor que eu tive e que se fez argila,
Como Tirteu na guerra de Messênia!
Transponho assim toda a sombria escarpa
Sinistro como quem medita um crime...
E quando a Dor me dói, tanjo minha harpa
E a harpa saudosa a minha Dor exprime!
Estes versos de amor que agora findo
Foram sentidos na solidão de uma horta,
À sombra dum verdoengo tamarindo
Que representa minha infância morta!
Pau d’Arco – 1905.
Augusto dos Anjos veio da Paraíba para o Rio de
Janeiro em 1910. Com 26 anos, recém-casado,
pensava conseguir na capital do Brasil um meio de subsistência compatível com a cultura e o talento que possuía. Não teve êxito e sua desilusão seria ainda maior: não encontrou nem mesmo quem lhe apreciasse o estro. Para publicar aquele que viria a ser o seu único livro, precisou valer-se do auxílio financeiro do irmão.
A crítica contemporânea o ignorou e, se alguma exceção se abriu, foi para reputá-lo autor de versos estapafúrdios e aberrantes. De certo modo, o repúdio ao seu engenho poético e as penas da vida familiar confirmavam a voz pessimista do poeta, que cantava (e com que musicalidade!) a onipresença da dor e a excludente destinação do homem à morte, aos vermes e ao pó.
Conta Francisco de Assis Barbosa que, em novembro de 1914, Orris Soares e Heitor Lima encontraram-se com Olavo Bilac e o informaram do prematuro falecimento de Augusto. “E quem é esse Augusto?”, perguntou Bilac. Um grande poeta, responderam-lhe, e Heitor Lima recitou o soneto Versos a um coveiro.
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