Sempre olhando para mim, o homem colocou-as uma sobre outra, dobrou-as no sentido do comprimento, torceu-as, queimou-as no lampião e pôs as cinzas na bandeja. (p. 437.)
Pip pensa que, substituindo as notas velhas e sujas por cédulas limpas e novas, seja possível dissociar-se de uma vez por todas da “nódoa de prisão e crime” que até agora sempre o envolveu. Mas não é assim tão fácil, como Magwitch sente-se obrigado a fazê-lo ver, separar o mundo da culpa do mundo do desejo. Essa cena mostra, de modo silencioso e eficaz, o terrível despertar de Pip para a realidade de sua situação. Também diz algo a respeito da natureza da riqueza: dinheiro limpo não existe.
A sujeira radical daquelas notas gordas e suadas de uma libra sugere que examinemos, além do tumulto emocional e moral de Pip, as ideias sobre o processo social e econômico que Dickens já vinha expressando desde cerca de quinze anos antes de escrever Grandes esperanças, tanto em seus romances quanto em Household Words, o semanário que utilizava a partir de 1850 para divulgar suas ideias. Reconhece-se há muito tempo que sua atuação como reformador social tornou-se mais extensa e sistemática na década de 1840, e que os romances da última fase incorporam esse seu novo comprometimento. “Em Pickwick papers”, observa Humphry House, “um cheiro ruim era um cheiro ruim; em Our mutual friend é um problema.”8 O cheiro das notas de uma libra é um cheiro problemático.
Durante a Grande Exposição de 1851, Dickens e Richard Horne escreveram um artigo publicado em Household Words que contrastava as maravilhas do Palácio de Cristal com o que havia de antiquado na mostra de artefatos chineses que ocorreu no mesmo evento. “É muito curioso ver uma exposição de um povo que parou no tempo, sabe-se lá quantos séculos atrás, ao lado da exposição de um mundo em movimento.” Para os autores, Inglaterra e China representavam os extremos de progresso e reação, movimento e estagnação: “A Inglaterra, cultivando relações comerciais com todo o mundo; a China, mantendo-se fechada em si própria, tanto quanto possível”. A Inglaterra comunica-se com o mundo e prospera. Sua prosperidade depende do “intercâmbio”, um fluxo constante de produtos e informações dentro de suas fronteiras e com os outros países. A China encerra-se em si mesma, recusando o intercâmbio, bloqueando o fluxo de produtos e informações. Comparar a China com a Inglaterra é comparar o “estancamento” com o “progresso”.9
Os chineses, em suma, ainda não tinham descoberto as vantagens do Livre Comércio, uma doutrina que triunfara na Inglaterra desde a abolição das Corn Laws em 1846.* Dickens e Horne insistiam que os tóris, que em 1851 ainda não se haviam desvinculado da bandeira do protecionismo, estavam tentando transformar o país numa segunda China. Household Words defendia a expansão máxima do livre-câmbio por todo o mundo. Um artigo atacava a Companhia da Baía do Hudson** por impedir que fossem exploradas as terras sob seu controle, desse modo “impedindo o avanço do trabalho e do capital”. Para o autor, era como se a empresa tivesse colocado uma imensa placa com os dizeres “Proibida a passagem” em rios e estradas (07/01/1854). Quando Dickens e seus associados falavam em estancamento, tinham em mente algo bem concreto: haviam sido bloqueados os canais através dos quais deveriam fluir os produtos e as informações.
Era o fluxo de dinheiro, acima de tudo, segundo outro autor, que garantia que o intercâmbio comercial seguiria em frente “sem solavancos incômodos nem paradas súbitas” (17/05/1856). Quando Dickens e W. H. Wills visitaram o Banco da Inglaterra, eles admiraram “o coração poderoso do capital ativo, por cujas artérias e veias flui todo o meio circulante desta grande nação” (06/07/1850). Era a metáfora da circulação sanguínea, a metáfora básica da análise da riqueza no século xviii, que exprimia a admiração de Dickens pela “grande nação” em que ele vivia. Em 1850, ele ainda acreditava que a riqueza podia ser saudável: uma riqueza medida em notas de uma libra, finas, frescas, sem cheiro.
Não estaríamos reduzindo de modo absurdo a visão política de Dickens se disséssemos que ele era a favor da circulação e contra o estancamento, e que não tinha medo algum da aplicação literal dessa metáfora à existência cotidiana. Para ele, a vida do pobre só se tornaria suportável se houvesse uma circulação apropriada de ar e água em suas moradias. Causavam-lhe repulsa o estancamento físico, os espaços cercados e congestionados no centro da cidade, como o mercado de Smithfield, ou os cemitérios urbanos (1117 cadáveres por acre, segundo Household Words, emitindo 55,261 pés cúbicos de gases mefíticos por acre por ano).*** Dickens escreveu um artigo atacando violentamente o mercado de Smithfield, afirmando que representava um grande estorvo e perigo para o público, além de crueldade para os animais (04/05/1850). Pip, recém-chegado a Londres, visita o mercado, “e aquele lugar vergonhoso, todo coberto de imundície, gordura, sangue e escuma, pareceu grudar-se em mim” (p. 240). A gordura, sangue e escuma que contaminavam as notas de uma libra que lhe deram quando menino agora contaminam sua pessoa. A esclerose ameaça as artérias e veias através das quais o capital ativo outrora fluía livremente.
Os romances da última fase associam um ponto de estancamento a outro, de modo metafórico e metonímico. Esses pontos são ao mesmo tempo intercambiáveis e contíguos. Pip livra-se da gordura e da escuma de Smithfield entrando numa rua que o leva às imediações da prisão de Newgate, lugar que, por sua vez, também gera sua quota de gordura e escuma.
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