Depois Tommy avançou com altivez e solenidade para executar um salto mortal, habilidade em que adquirira grande destreza à força de perseverança e de sofrer quedas e pancadas tremendas. Grandes aplausos aclamaram a habilidade do pequeno, e quando este, inchado de vaidade e vermelho por lhe ter subido o sangue à cabeça, se dispunha a sentar-se, ouviu-se uma voz gritar depreciativamente:
– Isso não vale nada!
– Volta a repetir o que disseste, se te atreves! – rugiu indignado Tommy.
– Queres jogar à pancada? – exclamou Dan, abandonando o seu lugar e mostrando os punhos cerrados.
– Não, não – respondeu Tommy, assustado com a agressividade de Dan.
– Estão proibidas as brigas – gritaram em coro os demais rapazes.
– Que sorte tens! – murmurou Dan, troçando.
– Se não te portas bem não ficarás connosco – insinuou Nat, ofendido com aquele insulto feito ao seu amigo.
– Gostava de o ver dar o salto mortal melhor do que eu – observou Tommy.
– Então espera e verás – disse Dan, que, sem balanço, deu três saltos mortais seguidos, ficando de pé.
– Saltou muito melhor do que tu – disse Nat a Tommy, muito satisfeito pela agilidade do seu protegido.
Naquele momento Dan executava três saltos mortais de costas e passeava sobre as mãos, com os pés para cima e a cabeça para baixo. Os espectadores aclamaram freneticamente. Dan permanecia imóvel, olhando todos com ar de tranquila superioridade.
– Achas que serei capaz de aprender tudo isso que tu sabes sem me aleijar? – perguntou Tommy.
– E que me darás tu se eu te ensinar?
– O meu canivete novo; tem cinco lâminas e só uma está partida.
– Dá-mo cá.
Tommy entregou o canivete, olhando-o com certa pena, Dan examinou-o, meteu-o no bolso e voltou as costas ao rapaz dizendo:
– Fico com ele até que aprendas.
Tommy lançou um uivo; gritaram todos os rapazes indignados e Dan, vendo-se em minoria, propôs que se jogasse o canivete ao "cara ou coroa". Acedeu o seu legítimo dono, formou-se um círculo e em todos os rostos se refletiu ansiedade, que se converteu depois em satisfação quando Tommy ganhou o jogo e sepultou o canivete nas insondáveis profundezas dos seus bolsos.
– Acompanha-me, que eu vou mostrar-te o que há para ver na casa – disse Nat, compreendendo que era preciso falar séria e reservadamente com o seu amigo.
O que os dois garotos disseram um ao outro ninguém o soube; mas quando apareceram novamente, Dan mostrou-se mais respeitoso para com todos, ainda que continuasse um tanto áspero no falar e grosseiro nos modos. Mas poderia esperar-se algo melhor de um pobre rapaz abandonado, sem afetos e sem educação?
Os rapazes concordaram em que o novo companheiro era pouco simpático e deixaram-no só com Nat. Este, embora sentisse a responsabilidade que havia contraído, era demasiado bom para abandonar um antigo amigo seu.
Tommy, apesar do incidente do canivete, espreitava a oportunidade de voltar a falar sobre o ensino dos saltos mortais. A ocasião proporcionou-se depressa, porque Dan, ao ver- se admirado, mostrara-se mais afetuoso, e, antes de a semana findar, já o aprendiz de acrobata falava com ele com toda a intimidade.
Depois de ter visto Dan e de se informar de como ele tinha entrado para a casa, o papá Bhaer meneou a cabeça e limitou-se a dizer tranquilamente:
– A experiência pode sair-nos cara, mas tentá-la-emos.
Se Dan sentia reconhecimento para com os seus protetores não o dava a entender, limitando-se a receber o que lhe ofereciam, sem agradecer. Era ignorante, mas com muita inclinação para aprender quando queria; tinha olhar inquiridor, língua desbragada, modos rudes e carácter altaneiro umas vezes, taciturno outras. Era muito destro em toda a espécie de jogos. Com as pessoas mais velhas mostrava-se silencioso e grosseiro, e só de vez em quando parecia sociável para com os rapazes. Estes não simpatizavam com ele, mas admiravam-no por ser valente, forte e audacioso. Certa ocasião derrubou facilmente o grandalhão do Franz. O papá Bhaer observava e estudava o menino selvagem e costumava dizer para consigo: "Oxalá a experiência nos dê bom resultado, mas receio que nos saia cara".
Ao tentar ensinar Dan, a tia Jo desesperava-se seis ou oito vezes por dia, procurando dissimular a sua impaciência e afirmando sempre que o rapaz tinha no fundo bom coração.
Era mais carinhoso para os animaizinhos do que para as pessoas; gostava de vaguear sozinho pelo bosque, mas, coisa estranha, mostrava um carinho apaixonado por Teddy. A que obedecia isto? Ninguém o pôde averiguar, mas a verdade era que estava sempre pronto para brincar com o "bebé", com quem se dava às mil maravilhas, e o pequeno entusiasmava-se e não queria estar com mais ninguém que não fosse o selvagenzinho, a que chamava "mê Danny".
Teddy era a única pessoa por quem Dan mostrava afeto, embora reservasse as suas demonstrações de amizade para os momentos em que se encontravam sós. Mas os olhos de uma mãe veem tudo e o coração materno, instintivamente, sabe adivinhar quem ama os seus filhos. A tia Jo, quando descobriu o fraco de Dan, esforçou-se por aumentar a brecha para conseguir a conquista daquela alma.
Todavia, um acontecimento inesperado e de certa gravidade destruiu todos esses planos e desterrou de Plumfield o menino selvagem.
Tommy, Nat e "Meio-Brooke" começaram a proteger Dan ao vê-lo alvo de desprezo dos outros rapazes; e muito depressa sentiram que existia certa fascinação no mau pequeno e admiravam-no mais e mais, cada um por razões diferentes. Tommy admirava- o por ser hábil e valoroso; Nat queria pagar-lhe a antiga dívida de afeto, e "Meio-Brooke" considerava-o como um livro de histórias vivo, pois o pequeno selvagem estava sempre disposto a contar alguma das suas numerosas e interessantes aventuras. Dan lisonjeava-se com a predileção dos três rapazes e esforçava-se por se tornar agradável.
Os esposos Bhaer estavam surpreendidos e esperavam ansiosos que o trato e a influência dos três meninos ajudassem Dan, sem prejuízo para nenhum deles.
Dan percebia que tinham escassa confiança nele e em lugar de procurar inspirá-la comprazia-se em mostrar-se pior do que era e em frustrar as esperanças dos seus protetores, esgotando-lhes a paciência.
O papá Bhaer não consentia brigas, por não considerar exercício viril nem prova de coragem que dois rapazes se socassem mutuamente para divertimento dos outros. Tolerava toda a espécie de jogos e exercícios arriscados, mas opunha-se a que, por passatempo, os pequenos se espancassem uns aos outros, esmurrando os olhos e o nariz à força de socos.
Dan ria-se da proibição e comprazia-se em falar acerca da sua coragem e das lutas em que tantas vezes tinha intervindo. E tão entusiásticas eram as suas descrições que os ouvintes sentiam-se inflamados de ardores bélicos.
– Se prometem guardar segredo eu ensino-vos a lutar – disse Dan, certo dia. E, reunindo meia dúzia de condiscípulos atrás do palheiro, deu-lhes uma lição de boxe que os deixou satisfeitos a quase todos. Todavia, Emil não se resignava a reconhecer a superioridade do seu colega mais novo – pois tinha feito já catorze anos e era o galito da casa –, e voltou a desafiar Dan. Este aceitou o repto, que provocou grande interesse entre os demais.
Certamente "o espírito santo de orelha" levara ao mestre a notícia do que se estava passando, porque no melhor da refrega, quando Dan e Emil se batiam embravecidos e todos os outros os excitavam ferozmente, o papá Bhaer entrou no círculo, separando os dois contendores com mão vigorosa e exclamando, com ar solene e pouco vulgar nele:
– Não consinto isto! Parem imediatamente e que jamais se volte a repetir semelhante espetáculo! Eu tenho uma escola para meninos e não para bichos selvagens. Olhai-vos e envergonhai-vos de vós mesmos.
– Larguem-me, larguem-me, que eu lhe digo – exclamou Dan, lutando para se libertar.
– Vem cá! Vem cá! Se ainda queres mais! – gritava Emil, que caíra cinco vezes por terra e não dava conta dos murros sofridos.
– Estavam a brincar aos gladiadores romanos – disse "Meio-Brooke", com os olhos muito abertos pela excitação que lhe produzira o novo passatempo.
– Os gladiadores eram obrigados a esses espetáculos e creio que desde então para cá alguma coisa aprendemos. Não consinto que a minha casa se converta em coliseu romano. Quem propôs isto? – perguntou o Sr. Bhaer, muito contrariado.
– Dan – disseram vários pequenos.
– Não sabias que as rixas estavam proibidas?
– Sim.
– Então porque desobedeceste às minhas ordens?
– É que, se não aprendem a lutar, vão ficar todos uns chochinhas.
– Achaste Emil um chochinhas? – perguntou o papá Bhaer, pondo os dois rapazes frente a frente. Dan tinha um olho todo pisado e o casaco feito em tiras. Emil, um lábio ensanguentado, o nariz esmurrado e um alto na testa.
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