No entanto, olhava para o seu rival com vontade de renovar a peleja.

– Se aprendesse a lutar seria um adversário terrível – respondeu Dan, incapaz de regatear elogios ao adversário que o tinha obrigado a empregar todos os seus recursos.

– Há de aprender esgrima e boxe quando for altura, mas até lá passa muito bem sem receber lições da arte de jogar à bofetada. Ide-vos embora e lavai a cara; e tu, Dan, fica sabendo que, se voltas outra vez a desobedecer às minhas ordens, expulsar-te-ei daqui.

Afastaram-se os dois rapazes e, após breve responso aos espectadores, afastou-se também o papá Bhaer, que foi tratar das feridas aos incipientes pugilistas. Emil deitou-se porque se sentiu doente e Dan, durante uma semana, andou com o rosto desfigurado.

Mas o indómito rapazola não pensava em obedecer e depressa cometeu nova diabrura.

Um sábado à tarde, enquanto os mais pequenos tinham ido brincar, propôs ao Tommy:

– Queres ir até ao riacho e cortar um molho de canas novas para a pesca?

– Está bem, mas levamos o burrinho, para que as traga, e um de nós poderá vir montado nele – sugeriu "Traga-Bolos", inimigo declarado das caminhadas.

– Estou a ver que quem o monta és tu, meu "lesma"; mas está bem, vamos – exclamou Dan.

Afastaram-se e, assim que chegaram ao seu destino, cortaram as canas e retomaram o caminho do regresso.

Então, em má hora, vendo Tommy ereto sobre o burrito e empunhando uma comprida cana, lembrou-se de dizer a "Meio-Brooke":

– Parece um picador de touros; só lhe falta o trajo.

– Gostava de me encontrar em frente de um touro – disse Tommy, sobraçando a garrocha.

– Aqui perto temos um; na outra metade do prado está a velha Suíça, vamos lá acirrá-la – propôs Dan.

– De maneira nenhuma – gritou "Meio-Brooke", que desconfiava das propostas de Dan.

– E porque não, meu medroso? – perguntou Dan.

– Porque o papá Bhaer não gosta.

– Já o ouviste alguma vez dizer que nos proibia de fazer corridas de touros?

– Não.

– Pois então cala-te e anda, Tommy. Por acaso tenho comigo um trapo vermelho que vai servir de capote para fazer os passes – disse Dan, saltando a paliçada.

Tommy seguiu-o e "Meio-Brooke" sentou-se tranquilamente para presenciar a corrida.

A Suíça, ao ver-se acossada, deitou a correr pelo campo fora, perseguida e fustigada pelos pequenos. Por fim, o animal cansou-se e investiu contra o picador, derrubando o burro e o cavaleiro. Depois saltou a paliçada, fugindo desordenadamente pela estrada, até se perder de vista.

– Detenham-na! Detenham-na – gritava Dan, correndo atrás da Suíça, porque sabia que a vaca era o animal predileto do papá Bhaer e pensava que se algum mal lhe acontecesse seria sobre ele que recairia a culpa.

Que saltos, gritos e correrias tiveram de dar até apanhar a Suíça! As canas foram abandonadas; os rapazes estavam aterrados e sem fôlego. Por fim deram com a vaca, que, farta de correr, se refugiara numa horta. Dan deitou-lhe uma corda ao pescoço e conduziu-a para casa, seguido pela tauromáquica quadrilha, que caminhava compungidíssima porque a Suíça ia ensopada em suor e a coxear por ter deslocado uma pata ao saltar a "barreira".

Quando o papá Bhaer viu chegar a vaca e soube do que sucedera falou pouco com receio de falar com demasiada dureza. A Suíça foi para o estábulo e ali lhe fizeram o primeiro tratamento. Os rapazes foram mandados para os seus quartos até à hora de comer. Durante esse tempo puderam meditar acerca do castigo que os esperava, especialmente a Dan. Este, fingindo-se despreocupado, assobiava alegremente; mas por dentro sentia o maior desejo de continuar a viver ali, desejo que aumentava ao recordar-se das comodidades e do afeto de que o rodeavam, em contraste com a miséria e o abandono em que outrora se achara. Compreendia perfeitamente o muito que tinham feito por ele e sentia uma grande gratidão pelo bem recebido, mas as asperezas na vida haviam-no tornado duro, insolente, obstinado e desconfiado. Odiava todas as restrições e revoltava-se contra elas, embora soubesse que eram justas. Na sua imaginação vagabundeou, como noutro tempo, pela cidade e ao pensar no que o esperava franzia a testa e relanceou o olhar pelo seu risonho quartinho com uma expressão de pesar capaz de comover um coração muito mais duro do que o do papá Bhaer.

No entanto, tal expressão desapareceu quando o mestre entrou e lhe disse muito seriamente:

– Estou ao corrente do que aconteceu e sei que de novo desobedeceste às minhas ordens; para comprazer a mamã Bhaer vou conceder-te de novo um prazo. Muitas vezes me contaram que tu te mostras mais afetuoso para os animais do que para as pessoas e a mamã Bhaer gostava muito dessa tua conduta por julgá-la sinal de bom coração. Vemos que nos enganámos e sentimo-lo bastante porque aspirávamos fazer de ti um homenzinho. Achas que devemos tentar de novo?

Dan tinha estado de cabeça baixa, dando voltas ao chapéu. Quando ouviu a carinhosa interrogação do papá Bhaer ergueu ansiosamente o olhar e respondeu com ar respeitoso que até então nunca empregara:

– Sim, senhor; se os senhores assim quiserem.

– Seja, pois, e não falemos mais nisso. O teu castigo e dos teus companheiros fica limitado a que não saiam a passear até que a pobre Suíça fique completamente restabelecida.

– Sim senhor.

– Agora, desce para comeres e procura comportar-te o melhor possível, meu filho, mais por ti do que por nós.

O Sr. Bhaer afastou-se, não sem ter trocado primeiro um aperto de mão com Dan. Este desceu para sentar-se à mesa muito mais contrito pelo carinho do que se lhe tivessem administrado as chicotadas que a indignada Asia recomendara.

Durante dois dias Dan moderou-se, mas como não estava habituado a isso depressa se cansou e voltou às suas antigas diabruras.

O papá Bhaer, por assuntos particulares, teve de passar um dia fora de casa e como tal os rapazes não tiveram aula. Ficaram contentíssimos e brincaram todo o santo dia até à hora de se deitarem. Quase todos adormeceram como justos.

Quando Dan se viu só com Nat, tirou debaixo da cama uma garrafa, um cigarro e um baralho de cartas e disse:

– Olha! Vou passar um bom bocado como aqueles que passava com os meus amigos da cidade. Tenho aqui cerveja e um cigarro, que comprei fiado ao velhote da estação; tu encarregas-te de o pagar por mim senão que o pague Tommy, que tem muito dinheiro, enquanto eu não tenho um centavo. Vou convidar os outros.

– Eles não gostam de beber nem de fumar.

– Que sabem eles disso! O papá Bhaer está fora e a tia Jo não se afasta do berço de Teddy, que está com anginas. Não fazendo barulho, podemos ficar acordados sem que ninguém saiba.

– Saberá Asia, porque percebe quando a lâmpada fica acesa muito tempo.

– Não se apercebe; porque para evitar isso trouxe uma lanterna furta-fogo. Não dá muita luz, mas, em contrapartida, oferece a vantagem de podermos apagá-la instantaneamente se ouvirmos alguém aproximar-se.

– Queres que chame "Meio-Brooke"?

– Não, o "Diácono" ficaria escandalizado e pregava-nos um sermão. Acorda Tommy sem fazeres barulho.

Nat obedeceu e ao cabo de um minuto regressou com Tommy, meio vestido e a cair de sono, mas disposto a divertir-se.

– Bom, está tudo a calhar; vou ensinar-vos um jogo muito bonito que se chama póquer – exclamou Dan.

Os três jogadores sentaram- se em volta da mesa, sobre a qual colocaram a garrafa, o cigarro e as cartas.

– Primeiro vamos beber; seguidamente daremos umas fumaças no cigarro e em seguida jogaremos. É assim que fazem os homens e divertem-se muito.

A cerveja circulou por todos; beberam, embora Nat e Tommy não tivessem gostado da amarga bebida; o cigarro agradou-lhes menos ainda, mas não se atreveram a confessá-lo.