79

 

Olhai que há tanto tempo que, cantando

O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,

A fortuna mo traz peregrinando,

Novos trabalhos vendo, e novos danos:

Agora o mar, agora experimentando

Os perigos Mavórcios inumanos,

Qual Canace, que à morte se condena,

Numa mão sempre a espada, e noutra a pena.

 

80

 

Agora, com pobreza avorrecida,

Por hospícios alheios degradado;

Agora, da esperança já adquirida,

De novo, mais que nunca, derribado;

Agora às costas escapando a vida,

Que dum fio pendia tão delgado

Que não menos milagre foi salvar-se

Que para o Rei Judaico acrescentar-se.

 

81

 

E ainda, Ninfas minhas, não bastava

Que tamanhas misérias me cercassem,

Senão que aqueles, que eu cantando andava

Tal prémio de meus versos me tornassem:

A troco dos descansos que esperava,

Das capelas de louro que me honrassem,

Trabalhos nunca usados me inventaram,

Com que em tão duro estado me deitaram.

 

82

 

Vede, Ninfas, que engenhos de senhores

O vosso Tejo cria valorosos,

Que assim sabem prezar com tais favores

A quem os faz, cantando, gloriosos!

Que exemplos a futuros escritores,

Para espertar engenhos curiosos,

Para porem as coisas em memória,

Que merecerem ter eterna glória!

 

83

 

Pois logo em tantos males é forçado,

Que só vosso favor me não faleça,

Principalmente aqui, que sou chegado

Onde feitos diversos engrandeça:

Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado

Que não o empregue em quem o não mereça,

Nem por lisonja louve algum subido,

Sob pena de não ser agradecido.

 

84

 

Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse

A quem ao bem comum e do seu Rei

Antepuser seu próprio interesse,

Inimigo da divina e humana Lei.

Nenhum ambicioso, que quisesse

Subir a grandes cargos, cantarei,

Só por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seus vícios;

 

85

 

Nenhum que use de seu poder bastante,

Para servir a seu desejo feio,

E que, por comprazer ao vulgo errante,

Se muda em mais figuras que Proteio.

Nem, Camenas, também cuideis que canto

Quem, com hábito honesto e grave, veio,

Por contentar ao Rei no ofício novo,

A despir e roubar o pobre povo.

 

86

 

Nem quem acha que é justo e que é direito

Guardar-se a lei do Rei severamente,

E não acha que é justo e bom respeito,

Que se pague o suor da servil gente;

Nem quem sempre, com pouco experto peito,

Razões aprende, e cuida que é prudente,

Para taxar, com mão rapace e escassa,

Os trabalhos alheios, que não passa.

 

87

 

Aqueles sós direi, que aventuraram

Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,

Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,

Tão bem de suas obras merecida.

Apolo, e as Musas que me acompanharam,

Me dobrarão a fúria concedida,

Enquanto eu tomo alento descansado,

Por tornar ao trabalho, mais folgado.

Canto VIII

 

1

 

Na primeira figura se detinha

O Catual que vira estar pintada,

Que por divisa um ramo na mão tinha,

A barba branca, longa e penteada:

"Quem era, e por que causa lhe convinha

A divisa, que tem na mão tomada?"

Paulo responde, cuja voz discreta

O Mauritano sábio lhe interpreta.

 

2

 

"Estas figuras todas que aparecem,

Bravos em vista e feros nos aspectos,

Mais bravos e mais feros se conhecem,

Pela fama, nas obras e nos feitos:

Antigos são, mas ainda resplandecem

Colo nome, entre os engenhos mais perfeito

Este que vês é Luso, donde a fama

O nosso Reino Lusitânia chama.

 

3

 

"Foi filho e companheiro do Tebano,

Que tão diversas partes conquistou;

Parece vindo ter ao ninho Hispano

Seguindo as armas, que contino usou;

Do Douro o Guadiana o campo ufano,

Já dito Elísio, tanto o contentou,

Que ali quis dar aos já cansados ossos

Eterna sepultura, e nome aos nossos.

 

4

 

"O ramo que lhe vês para divisa,

O verde tirso foi de Baco usado;

O qual à nossa idade amostra e avisa

Que foi seu companheiro e filho amido.

Vês outro, que do Tejo a terra pisa,

Depois de ter tão longo mar arado,

Onde muros perpétuos edifica,

E templo a Palas, que em memória fica?

 

5

 

"Ulisses é o que faz a santa casa

A Deusa, que lhe dá língua facunda;

Que, se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,

Cá na Europa Lisboa ingente funda."

- "Quem será estoutro cá, que o campo arrasa

De mortos, com presença furibunda?

Grandes batalhas tem desbaratadas,

Que as águias nas bandeiras tem pintadas."

 

6

 

Assim o Gentio diz.Responde o Gama:

- "Este que vês, pastor já foi de gado;

Viriato sabemos que se chama,

Destro na lança mais que no cajado;

Injuriada tem de Roma a f ama,

Vencedor invencível afamado;

Não tem com ele, não, nem ter puderam

O primor que com Pirro já tiveram.

 

7

 

"Com força, não; com manha vergonhosa,

A vida lhe tiraram que os espanta:

Que o grande aperto, em gente ainda que honrosa,

As vezes leis magnânimas quebranta.

Outro está aqui que, contra a pátria irosa,

Degradado, conosco se alevanta:

Escolheu bem com quem se alevantasse,

Para que eternamente se ilustrasse.

 

8

 

"Vês? conosco também vence as bandeiras

Dessas aves de Júpiter validas;

Que já naquele tempo as mais Guerreiras

Gentes de nós souberam ser vencidas.

Olha tão subtis artes e maneiras,

Para adquirir os povos, tão fingidas,

A fatídica Cerva que o avisa:

Ele é Sertório, e ela a sua divisa.

 

9

 

"Olha estoutra bandeira, e vê pintado

O grã progenitor dos Reis primeiros.

Nós Úngaro o fazemos, porém nado

Crêem ser em Lotaríngia os estrangeiros.

Depois de ter com os Mouros superado,

Galegos e Leoneses cavaleiros,

A casa Santa passa o santo Henrique,

Por que o tronco dos Reis se santifique."

 

10

 

"Quem é, me diz, este outro que me espanta,

(Pergunta o Malabar maravilhado)

Que tantos esquadrões, que gente tanta,

Com tão pouca, tem roto e destroçado?

Tantos muros aspérrimos quebranta,

Tantas batalhas dá, nunca cansado,

Tantas coroas tem por tantas partes

A seus pés derribadas, e estandartes!"

 

11

 

- "Este é o primeiro Afonso, disse o Gama,

Que todo Portugal aos Mouros toma;

Por quem, no Estígio lago, jura a Fama

De mais não celebrar nenhum de Roma.

Este é aquele zeloso a quem Deus ama,

Com cujo braço o Mouro inimigo doma,

Para quem de seu Reino abaixa os muros,

Nada deixando já para os futuros,

 

12

 

"Se César, se Alexandre Rei, tiveram

Tão pequeno poder, tão pouca gente,

Contra tantos inimigos quantos eram

Os que desbaratava este excelente,

Não creias que seus nomes se estendera

Com glórias imortais tão largamente;

Mas deixa os feitos seus inexplicáveis,

Vê que os de seus vassalos são notáveis.

 

13

 

"Este que vês olhar com gesto irado

Para o rompido aluno mal sofrido,

Dizendo-lhe que o exército espalhado

Recolha, e torne ao campo defendido;

Torna o moço do velho acompanhado,

Que vencedor o torna de vencido:

Egas Moniz se chama o forte velho,

Para leais vassalos claro espelho.

 

14

 

"Vê-lo cá vai com os filhos a entregar-se,

A corda ao colo, nu de seda e pano,

Porque não quis o moço sujeitar-se,

Como ele prometera, ao Castelhano.

Fez com siso e promessas levantar-se

O cerco, que já estava soberano;

Os filhos e mulher obriga à pena:

Para que o senhor salve, a si condena.

 

15

 

"Não fez o Cônsul tanto, que cercado

Foi nas forças Caudinas, de ignorante,

Quando a passar por baixo foi forçado

Do Samnítico jugo triunfante.

Este, pelo seu povo injuriado,

A si se entrega só, firme e constante;

Estoutro a si, e os filhos naturais,

E a consorte sem culpa, que dói mais.

 

16

 

"Vês este que, saindo da cilada,

Dá sobre o Rei que cerca a vila forte?

Já o Rei tem preso e a vila descercada:

Ilustre feito, digno de Mavorte!

Vê-lo cá vai pintado nesta armada,

No mar também aos Mouros dando a morto,

Tomando-lhe as galés, levando a glória

Da primeira marítima vitória.

 

17

 

"É, Dom Fuas Roupinho, que na terra

E no mar resplandece juntamente,

Com o fogo que acendeu junto da serra

De Abila, nas galés da Maura gente.

Olha como, em tão justa e santa guerra,

De acabar pelejando está contente:

Das mãos dos Mouros entra a feliz alma,

Triunfando, nos céus, com justa palma.

 

18

 

"Não vês um ajuntamento, de estrangeiro

Trajo, sair da grande armada nova,

Que ajuda a combater o Rei primeiro

Lisboa, de si dando santa prova?

Olha Henrique, famoso cavaleiro,

A palma que lhe nasce junto à cova.

Por eles mostra Deus milagre visto:

Germanos são os mártires de Cristo.

 

19

 

"Um Sacerdote vê brandindo a espada

Contra Arronches, que toma, por vingança

De Leiria, que de antes foi tomada

Por quem por Mafamede enresta a lança:

É Teotónio, Prior.Mas vê cercada

Santarém, e verás a segurança

Da figura nos muros, que primeira

Subindo, ergueu das Quinis a bandeira.

 

20

 

"Vê-lo cá, donde Sancho desbarata

Os Mouros de Vandália em fera guerra;

Os inimigos rompendo, o alferes mata

E o Hispálico pendão derriba em terra:

Mem Moniz é, que em si o valor retrata,

Que o sepulcro do pai com os ossos cerra,

Digno destas bandeiras, pois sem falta

A contrária derriba e a sua exalta.

 

21

 

"Olha aquele que desce pela lança?

Com as duas cabeças dos vigias,

Onde a cilada esconde, com que alcança

A cidade por manhas e ousadias.

Ela por armas toma a semelhança

Do cavaleiro, que as cabeças frias

Na mão levava (feito nunca feito!)

Giraldo Sem-pavor é o forte peito.

 

22

 

"Não vês um Castelhano, que agravado

De Afonso nono rei, pelo ódio antigo

Dos de Lara, com os Mouros é deitado,

De Portugal fazendo-se inimigo?

Abrantes vila toma, acompanhado

Dos duros infiéis que traz consigo.

Mas vê que um Português com pouca gente

O desbarata e o prende ousadamente.

 

23

 

"Martim Lopes se chama o cavaleiro,

Que destes levar pode a palma e o louro.

Mas olha um Eclesiástico guerreiro,

Que em lança de aço torna o Bago de ouro.

Vê-lo entre os duvidosos tão inteiro

Em não negar batalha ao bravo Mouro;

Olha o sinal no céu que lhe aparece,

Com que nos poucos seus o esforço cresce.

 

24

 

"Vós? vão os Reis de Córdova e Sevilha

Rotos, com os outros dois, e não de espaço.

Rotos? mas antes mortos, maravilha

Feita de Deus, que não de humano braço.

Vês? já a vila de Alcáçare se humilha,

Sem lhe valer defesa, ou muro de aço,

A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,

Que a coroa da palma ali coroa.

 

25

 

"Olha um Mestre que desce de Castela,

Português de nação, como conquista

A terra dos Algarves, e já nela

Não acha quem por armas lhe resista;

Com manha, esforço, e com benigna estrela,

Vilas, castelos toma à escala vista.

Vês Tavila tomada aos moradores,

Em vingança dos sete caçadores!

 

26

 

"Vês? com bélica astúcia ao Mouro ganha

Silves, que ele ganhou com força ingente:

É Dom Paio Correia, cuja manha

E grande esforço faz inveja à gente.

Mas não passes os três que em França e Espanha

Se fazem conhecer perpetuamente

Em desafios, justas e torneios,

Nelas deixando públicos troféus.

 

27

 

"Vê-los, com o nome vêm de aventureiros

A Castela, onde o preço sós levaram

Dos jogos de Belona verdadeiros,

Que com dano de alguns se exercitaram.

Vê mortos os soberbos cavaleiros,

Que o principal dos três desafiaram,

Que Gonçalo Ribeiro se nomeia,

Que pode não temer a lei Leteia.

 

28

 

"Atenta num, que a fama tanto estende,

Que de nenhum passado se contenta;

Que a pátria, que de um fraco fio pende,

Sobre seus duros ombros a sustenta.

Não no vês tinto de ira, que reprende

A vil desconfiança inerte e lenta

Do povo, e faz que tome o doce freio

De Rei seu natural, e não de alheio?

 

29

 

"Olha: por seu conselho e ousadia

De Deus guiada só, e de santa estrela,

Só pode o que impossível parecia:

Vencer o povo ingente de Castela.

Vês, por indústria, esforço e valentia,

Outro estrago e vitória clara e bela,

Na gente, assim feroz como infinita,

Que entre o Tarteso e Goadiana habita?

 

30

 

"Mas não vês quase já desbaratado

O poder Lusitano, pela ausência

Do Capitão devoto, que, apartado

Orando invoca a suma e trina Essência?

Vê-lo com pressa já dos seus achado,

Que lhe dizem que falta resistência

Contra poder tamanho, e que viesse,

Por que consigo esforço aos fracos desse?

 

31

 

"Mas olha com que santa confiança,

- Que inda não era tempo, — respondia,

Como quem tinha em Deus a seguraria

Da vitória que logo lhe daria.

Assim Pompílio, ouvindo que a possança

Dos inimigos a terra lhe corria,

A quem lhe a dura nova estava dando,

-"Pois eu, responde, estou sacrificando." -

 

32

 

"Se quem com tanto esforço em Deus se atreve,

Ouvir quiseres como se nomeia,

Português Cipião chamar-se deve;

Mas mais de Dom Nuno Alvares se arreia:

Ditosa pátria que tal filho teve!

Mas antes pai, que enquanto o Sol rodeia

Este globo de Ceres e Netuno,

Sempre suspirará por tal aluno.

 

33

 

"Na mesma guerra vê que presas ganha

Estoutro Capitão de pouca gente;

Comendadores vence e o gado apanha,

Que levavam roubado ousadamente.

Outra vez vê que a lança em sangue banha

Destes, só por livrar com o amor ardente

O preso amigo, preso por leal:

Pêro Rodrigues é do Landroal.

 

34

 

"Olha este desleal o como paga

O perjúrio que fez e vil engano:

Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga,

E faz vir a passar o último dano:

De Xerez rouba o campo, e quase alaga

Com o sangue de seus donos Castelhano.

Mas olha Rui Pereira, que com o rosto

Faz escudo às galés, diante posto.

 

35

 

"Olha que dezessete Lusitanos,

Neste outeiro subidos se defendem,

Fortes, de quatrocentos Castelhanos,

Que em derredor, pelos tomar, se estendem;

Porém logo sentiram, com seus danos,

Que não só se defendem, mas ofendem:

Digno feito de ser no mundo eterno,

Grande no tempo antigo e no moderno.

 

36

 

"Sabe-se antigamente que trezentos

Já contra mil Romanos pelejaram,

No tempo que os viris atrevimentos

De Viriato tanto se ilustraram,

E deles alcançando vencimentos

Memoráveis, de herança nos deixaram

Que os muitos, por ser poucos, não temamos:

O que depois mil vezes amestramos.

 

37

 

"Olha cá dois infantes, Pedro e Henrique,

Progénie generosa de Joane:

Aquele faz que fama ilustre fique

Dele em Germânia, com que a morte engane;

Este, que ela nos mares o publique

Por seu descobridor, e desengane

De Ceita a Maura túmida vaidade,

Primeiro entrando as portas da cidade.

 

38

 

"Vês o conde Dom Pedro, que sustenta

Dois cercos contra toda a Barbaria?

Vês, outro Conde está, que representa

Em terra Marte, em forças e ousadia;

De poder defender se não contenta

Alcácere da ingente companhia;

Mas do seu Rei defende a cara vida,

Pondo por muro a sua, ali perdida.

 

39

 

"Outros muitos verias, que os pintores

Aqui também por certo pintariam;

Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores,

Honra, prémio, favor, que as artes criam:

Culpa dos viciosos sucessores,

Que degeneram, certo, e se desviam

Do lustre e do valor dos seus passados,

Em gostos e vaidades atolados.

 

40

 

"Aqueles pais ilustres que já deram

Princípio à geração que deles pende,

Pela virtude muito então fizeram,

E por deixar a casa, que descende.

Cegos, que dos trabalhos que tiveram,

Se alta fama e rumor deles se estende,

Escuros deixam sempre seus menores,

Com lhe deixar descansos corruptores.

 

41

 

"Outros também há grandes e abastados,

Sem nenhum tronco ilustre donde venham;

Culpa de Reis, que às vezes a privados

Dão mais que a mil, que esforço e saber tenham.

Estes os seus não querem ver pintados,

Crendo que cores vãs lhe não convenham,

E, como a seu contrairo natural,

A pintura, que fala, querem mal.

 

42

 

"Não nego que há contudo descendentes

Do generoso tronco, e casa rica,

Que com costumes altos e excelentes,

Sustentam a nobreza que lhe fica;

E se a luz dos antigos seus parentes

Neles mais o valor não clarifica,

Não falta ao menos, nem se faz escura.

Mas destes acha poucos a pintura."

 

43

 

Assim está declarando os grandes feitos

O Gama, que ali mostra a vária tinta,

Que a douta mão tão claros, tão perfeitos,

Do singular artífice ali pinta.

Os olhos tinha prontos e direitos

O Catual na história bem distinta;

Mil vezes perguntava e mil ouvia

As gostosas batalhas que ali via.

 

44

 

Mas já a luz se mostrava duvidosa,

Porque a a lâmpada grande se escondia

Debaixo do Horizonte e luminosa

Levava aos Antípodas o dia,

Quando o Gentio e a gente generosa

Dos Naires da nau forte se partia

A buscar o repouso que descansa

Os lassos animais, na noite mansa.

 

45

 

Entretanto os Arúspices famosos

Na falsa opinião, que em sacrifícios

Antevêem sempre os casos duvidosos,

Por sinais diabólicos e indícios,

Mandados do Rei próprio, estudiosos

Exercitavam a arte e seus ofícios

Sobre esta vinda desta gente estranha,

Que às suas terras vem da ignota Espanha.

 

46

 

Sinal lhe mostra o Demo verdadeiro,

De como a nova gente lhe seria

Jugo perpétuo, eterno cativeiro,

Destruição de gente, e de valia.

Vai-se espantado o atónito agoureiro

Dizer ao Rei (segundo o que entendia)

Os sinais temerosos que alcançara

Nas entranhas das vítimas que olhara.

 

47

 

A isto mais se ajunta que um devoto

Sacerdote da lei de Mafamede,

Dos ódios concebidos não remoto

Contra a divina Fé, que tudo excede,

Em forma do Profeta falso e noto,

Que do filho da escrava Agar procede,

Baco odioso em sonhos lhe aparece,

Que de seus ódios ainda se não desse.

 

48

 

E diz-lhe assim: "Guardai-vos, gente minha,

Do mal que se aparelha pelo inimigo

Que pelas águas úmidas caminha,

Antes que esteis mais perto do perigo."

Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,

Espantado do sonho; mas consigo

Cuida que não é mais que sonho usado:

Torna a dormir quieto e sossegado.