No recostado gesto se assinala
Um venerando e próspero senhor;
Um pano de ouro cinge, e na cabeça
De preciosas gemas se adereça.
58
Bem junto dele um velho reverente,
Com os giolhos no chão, de quando em quando
Lhe dava a verde folha da erva ardente,
Que a seu costume estava ruminando.
Um Brâmene, pessoa proeminente,
Para o Gama vem com passo brando,
Para que ao grande Príncipe o apresente,
Que diante lhe acena que se assente.
59
Sentado o Gama junto ao rico leito,
Os seus mais afastados, pronto em vista
Estava o Samori no trajo e jeito
Da gente, nunca de antes dele vista.
Lançando a grave voz do sábio peito,
Que grande autoridade logo aquista
Na opinião do Rei e do povo todo,
O Capitão lhe fala deste modo:
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"Um grande Rei, de lá das partes Onde
O céu volúvel, com perpétua roda,
Da terra a luz solar com a terra esconde,
Tingindo a que deixou de escura noda,
Ouvindo do rumor que lá responde
O eco, como em ti da Índia toda
O principado está, e a majestade,
Vínculo quer contigo de amizade.
61
"E por longos rodeios a ti manda,
Por te fazer saber que tudo aquilo
Que sobre o mar, que sobre as terras anda
De riquezas, de lá do Tejo ao Nilo,
E desde a fria plaga de Gelanda
Até bem donde o Sol não muda o estilo
Nos dias, sobre a gente de Etiópia,
Tudo tem no seu Reino em grande cópia.
62
"E se queres com pactos e alianças
De paz e de amizade sacra e nua
Comércio consentir das abastanças
Das fazendas da terra sua e tua,
Por que cresçam as rendas e abastanças,
Por quem a gente mais trabalha e sua,
De vossos Reinos, será certamente
De ti proveito, o dele glória ingente.
63
"E sendo assim, que o nó desta amizade
Entre vós firmemente permaneça,
Estará pronto a toda adversidade,
Que por guerra a teu Reino se ofereça,
Com gente, armas e naus, de qualidade
Que por irmão te tenha e te conheça;
E da vontade em ti sobre isto posta
Me dês a mim certíssima resposta."
64
Tal embaixada dava o Capitão,
A quem o Rei gentio respondia
Que, em ver embaixadores de nação
Tão remota, grã glória recebia;
Mas neste caso a última tenção
Com os de seu conselho tomaria,
Informando-se certo de quem era
O Rei, e a gente, e terra que dissera..
65
E que entanto podia do trabalho
Passado ir repousar, e em tempo breve
Daria a seu despacho um justo talho,
Com que a seu Rei resposta alegre leve.
Já nisto punha a noite o usado atalho
As humanas canseiras, por que ceve
De doce sono os membros trabalhados,
Os olhos ocupando ao ócio dados.
66
Agasalhados foram juntamente
O Gama e Portugueses no aposento
Do nobre Regedor da Índica gente,
Com festas e geral contentamento.
O Catual, no cargo diligente
De seu Rei, tinha já por regimento
Saber da gente estranha donde vinha,
Que costumes, que lei, que terra tinha.
67
Tanto que os ígneos carros do formoso
Mancebo Délio viu, que a luz renova,
Manda chamar Monçaide, desejoso
De poder-se informar da gente nova.
Já lhe pergunta pronto e curioso,
Se tem notícia inteira e certa prova
Dos estranhos, quem são; que ouvido tinha
Que é gente de sua pátria muito vizinha;
68
Que particularmente ali lhe desse
Informação mui larga, pois faria
Nisso serviço ao Rei, por que soubesse
O que neste negócio se faria.
Monçaide torna: — "Posto que eu quisesse
Dizer-te disto mais, não saberia;
Somente sei que é gente lá de Espanha,
Onde o meu ninho e o Sol no mar se banha.
69
"Têm a lei dum Profeta, que gerado
Foi sem fazer na carne detrimento
Da mãe, tal que por bafo está aprovado
Do Deus, que tem do mundo o regimento,
O que entre meus antigos é vulgado
Deles, é que o valor sanguinolento
Das armas no seu braço resplandece,
O que em nossos passados se parece.
70
"Porque eles, com virtude sobre-humana,
Os deitaram dos campos abundosos
Do rico Tejo e fresco Goadiana,
Com feitos memoráveis e famosos:
E não contentes ainda, e na Africana
Parte, cortando os mares procelosos,
Nos não querem deixar viver seguros,
Tomando-nos cidades e altos muros.
71
"Não menos têm mostrado esforço e manha
Em quaisquer outras guerras que aconteças,
Ou das gentes belígeras de Espanha,
Ou lá dalguns que do Pírene desçam.
Assim que nunca enfim com lança estranha
Se tem, que por vencidos se conheçam,
Nem se sabe ainda, não, te afirmo e asselo,
Para estes Anibais nenhum Marcelo.
72
"E se esta informação não for inteira
Tanto quanto convém, deles pretende
Informar-te, que é gente verdadeira,
A quem mais falsidade enoja e ofende:
Vai ver-lhe a f rota, as armas e a maneira
Do fundido metal, que tudo rende,
E folgarás de veres a polícia
Portuguesa na paz e na milícia."
73
Já com desejos o Idolatra ardia
De ver isto, que o Mouro lhe contava.
Manda esquipar batéis que ir ver queria
Os lenhos em que o Gama navegava.
Ambos partem da praia, a quem seguia
A Naira geração, que o mar coalhava.
A capitania sobem forte e bela,
Onde Paulo os recebe a bordo dela.
74
Purpúreos são os toldos, e as bandeiras
Do rico fio são que o bicho gera;
Nelas estão pintadas as guerreiras
Obras, que o forte braço já fizera:
Batalhas tem campais, aventureiras,
Desafios cruéis, pintura fera,
Que, tanto que ao Gentio se apresenta,
A tento nela os olhos apascenta.
75
Pelo que vê pergunta; mas o Gama
Lhe pedia primeiro que se assente,
E que aquele deleite, que tanto ama
A seita Epicureia, experimente.
Dos espumantes vasos se derrama
O licor que Noé mostrara à gente:
Mas comer o Gentio não pretende,
Que a seita que seguia lho defende.
76
A trombeta que, em paz, no pensamento
Imagem faz de guerra, rompe os ares;
Com o fogo o diabólico instrumento
Se faz ouvir no fundo lá dos mares.
Tudo o Gentio nota; mas o intento
Mostrava sempre ter nos singulares
Feitos dos homens, que em retrato breve
A muda poesia ali descreve
77
Alça-se em pé, com ele o Gama junto,
Coelho de outra parti, e o Mauritano;
Os olhos põe no bélico transunto
De um velho branco, aspecto venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.
78
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
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