Houve histórias de motins, de ataques de piratas. Vários escritores inventaram histórias fictícias que buscavam explicar o mistério, das quais, evidentemente, a mais célebre se tornou a de Conan Doyle, publicada em janeiro de 1884, na revista Cornhill Magazine. O texto de Doyle recebeu tanto crédito, que os leitores escreveram cartas ao Ministério da Marinha Britânica, exigindo que uma investigação mais rigorosa fosse levada a cabo.

Mas o mistério permaneceu e uma grande quantidade de livros foram escritas sobre o tema, apresentando soluções que iam desde as mais realistas às mais insólitas. Em 1955, por exemplo, houve quem defendesse que a tripulação fora abduzida por um disco-voador. Também se falou na possibilidade de os tripulantes do bergantim terem sido sequestrados pelos habitantes da cidade submersa de Atlântida.

A explicação que se dá atualmente para o caso – e que é provavelmente a verdadeira – sugere que os gases que escapavam dos barris de álcool estavam tornando o compartimento de carga um lugar instável, onde qualquer faísca poderia provocar uma explosão. Por isso, o capitão resolveu travar o timão do barco, colocando-o no rumo certo e evacuar o navio, ficando todos os tripulantes no bote salva-vidas, amarrado ao bergantim e rebocado por ele, a uma distância segura.

Nas proximidades do arquipélago de Açores, contudo, uma tormenta inesperada fez com que a corda se rompesse e o barco-salva vidas, incapaz de suportar uma tempestade, tenha naufragado, provocando a morte de todos os seus ocupantes. Se o capitão Briggs não tivesse se precipitado e mantido todos a bordo do Marie Celeste, eles teriam chegados são e salvos a seu destino. Mas qualquer decisão num momento de crise, que precisa ser tomada em tempo exíguo, implica riscos e transforma a vida numa espécie de jogo, em que um movimento errado pode ser fatal.

O capitão do Estrela Polar

Já o segundo conto deste volume retoma as experiências que Conan Doyle teve como médico de bordo num baleeiro que navegou no Círculo Polar Ártico. Trata-se de um texto diferente do primeiro, no sentido de que não são as peripécias, as ações inusitadas que dominam o conto. Antes, é o clima, a atmosfera em que a história se passa, que se destaca sobre os fatos. O cenário gelado dos mares árticos, com suas geleiras que podem, de um momento para o outro, prender um navio e evitar que ele se desloque, é um dos elementos centrais da história.

Diga-se de passagem, o autor descreve esse cenário com a maestria de alguém que o observou de fato, que esteve nele e prestou atenção não só no que via, mas no que ouvia. Veja-se, por exemplo, o trecho em que Doyle descreve o profundo silêncio que domina a região. Por outro lado, o conto não se limita à observação da natureza. Ao contrário, o objetivo declarado do narrador é traçar um perfil psicológico do personagem que dá título à história. Mas, ao mesmo tempo, essa é uma intenção do autor, que talvez não chegue a se concretizar.

Conan Doyle está longe de ser um narrador característico do romance psicológico realista que se produzia nessa época, não é propriamente um escritor da linhagem de um Flaubert, de um Dostoievski ou mesmo, para dar um exemplo mais próximo, de um Machado de Assis. O autor de Sherlock Holmes é um criador de personagens típicos, que dificilmente apresentam as complexidades e as contradições dos seres humanos reais. Nem por isso, seus personagens deixam de ganhar para os leitores a presença real de homes de carne e osso.

É bem o caso do capitão Craigie, com sua obsessão que o leitor não sabe ao certo o que motiva, mas que, afinal, se revela no desfecho do texto, onde a presença, até então sutil, de um(a) fantasma parece se confirmar. O fato é que em meio ao clima nebuloso e gelado onde os fatos se passam é difícil ter certeza daquilo que se viu. Se o narrador, um médico e homem de ciência, fica na dúvida, por outro lado, é óbvio que o próprio Conan Doyle tem certeza do que narra: adepto do espiritismo, ele tinha convicção que muitas coisas que não se resolviam deste lado da existência podiam se resolver em outro. Cabe ao leitor refletir sobre o tema e descobrir se a narrativa do Capitão do Estrela Polar se situa no âmbito da pura ficção ou não.


O sobrevivente do navio fantasma

 

No mês de dezembro do ano de 1873, o navio britânico Dei Gratia dirigiu-se para o estreito de Gibraltar[2], rebocando o deserto bergantim Marie Celeste, que foi encontrado aos 38o 40’ de latitude Norte e à longitude de 17o 15’ Oeste. Havia muitas circunstâncias ligadas à condição e ao aparecimento desse barco abandonado que provocaram considerável polêmica na ocasião e despertaram uma curiosidade que nunca foi satisfeita. Descreveram-se brevemente quais foram essas circunstâncias num esmerado artigo publicado na “Gazeta de Gibraltar”. Quem se interessar pode encontrá-lo na edição de 4 de janeiro de 1874, a menos que minha memória esteja me enganando. Em benefício dos curiosos, no entanto, que podem não conseguir encontrar o referido jornal, posso citar alguns poucos trechos que tocam nos principais aspectos do caso.

“Estivemos pessoalmente”, diz o redator anônimo da “Gazeta”, “no deserto Marie Celeste, assim como questionamos incisivamente os tripulantes do Dei Gratia sobre todo ponto que pudesse lançar alguma luz no caso. Eles são da opinião de que o barco ficou abandonado durante vários dias, ou talvez semanas, antes de ser encontrado. O diário de bordo oficial, que foi encontrado no camarote do capitão, informa que o barco navegava de Boston para Lisboa, viagem iniciada em 16 de outubro. Contudo, o livro não estava devidamente preenchido e fornecia pouca informação. Não há referência a tormentas e, de fato, a calafetagem do casco e o cordame das velas evidenciavam que a embarcação não havia sido abandonada por algo do gênero. O barco estava em perfeitas condições de navegação. Nenhum sinal de luta ou violência foi detectado e nada existia que explicasse o desaparecimento da tripulação.