Havia várias indicações de que uma mulher esteve presente a bordo, pois encontrou-se uma máquina de costura e outros artigos de uso feminino. Pertenciam, provavelmente, à esposa do capitão, cujo diário mencionava estar ela acompanhando o marido. Como demonstração da tranquilidade do clima, pode-se apontar o fato de um carretel de linha ter sido encontrado no tampo da máquina de costura, ao passo que a menor oscilação do casco o teria derrubado no chão. Os botes salva-vidas estavam intactos e pendiam normalmente de seus suportes. A carga, que consistia de sebo[3] e de relógios americanos, estava intacta. Uma espada antiquada, com cabo artesanalmente ornamentado, foi descoberta numa bancada do castelo de proa e declarou-se que essa arma exibia estrias longitudinais no aço da lâmina, como se tivesse sido recentemente polida. Ela foi entregue à polícia e submetida ao Dr. Monagham, o perito, para análise. O resultado de seu trabalho ainda não foi divulgado. Podemos ainda acrescentar, em conclusão, que o capitão Dalton, do Dei Gratia, um marinheiro experiente e capaz, é de opinião que o Marie Celeste deve ter sido abandonado a uma distância considerável do local onde foi encontrado, já que existe uma forte corrente marítima naquela latitude da costa africana. Entretanto, ele confessa sua incapacidade para levantar qualquer hipótese que consiga reunir todos os fatos do caso em uma explicação. Na total ausência de pista ou da menor evidência, só se pode supor que o destino da tripulação do Marie Celeste será adicionado àqueles numerosos mistérios das profundezas, que jamais serão solucionados até o dia do juízo final, quando o mar, enfim, revelará seus mortos. Se algum crime foi cometido, como bem se pode suspeitar, é pequena a esperança de trazer à justiça os que o praticaram”.
Devo suplementar esse resumo da “Gazeta de Gibraltar” mencionando um telegrama de Boston, divulgado pelos jornais ingleses e que representa a totalidade de informações que se reuniu sobre o Marie Celeste. “Ele era”, dizia-se, “um bergantim de 170 toneladas, pertencente a White, Russell & White, importadores de vinho desta cidade. O capitão J. W. Tibbs era um velho funcionário da empresa e um homem de reconhecida habilidade e honestidade. Estava acompanhado por sua esposa, de 31 anos, e de seu filho caçula, de cinco. A tripulação consistia de sete homens, incluindo dois marinheiros negros, e um adolescente. Havia três passageiros, um dos quais era o renomado especialista em tuberculose, do Brooklin[4], Dr. Habakuk Jephson, que foi um destacado membro da campanha abolicionista, nos primeiros dias do movimento, e cujo panfleto intitulado “Onde está o teu irmão?” teve grande influência na opinião pública norte-americana antes da Guerra Civil[5]. Os outros passageiros eram o sr. J. Harton, um escrivão da firma, e o sr. Septimius Goring, um cavalheiro mestiço, de Nova Orleans. Todas as investigações falharam em lançar qualquer luz sobre o destino desses 14 seres humanos. A perda do Dr. Jephson será sentida tanto nos meios políticos quanto científicos”.
Apresentei aqui, em benefício do leitor, tudo o que até então se sabia a respeito do Marie Celeste e de sua tripulação e, ao longo dos dez anos seguintes, nada ajudou de modo algum a solucionar o mistério. Agora, decidi pegar minha caneta com a intenção de contar tudo que sei sobre a malfadada viagem. Considero que é um dever meu para com a sociedade, pois certos sintomas que reconheci em outras pessoas me levaram a acreditar que, antes de muitos meses, minha língua e minha mão pareciam incapazes de transmitir qualquer informação.
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