Permita-se declarar, como prefácio à minha narrativa, que eu sou Joseph Habakuk Jephson, doutor em medicina pela Universidade de Harvard[6] e ex-médico do Hospital Samaritano do Brooklin.

Muitos, sem dúvida, se perguntarão por que eu não me apresentei anteriormente, por que deixei passarem por mim, de modo incólume, tantas conjecturas e suposições. Pudessem os fins da justiça ser beneficiados de algum modo pela minha revelação dos fatos de meu conhecimento, assim eu teria agido, sem a menor hesitação. Pareceu-me, contudo, que não havia possibilidade de se obter esse resultado. E, quando tentei, pouco depois do ocorrido, explicar o meu caso a uma autoridade inglesa, fui submetido a uma incredulidade tão ofensiva, que jurei a mim mesmo jamais me expor novamente a ocasião de tamanha indignidade. Entretanto, posso perdoar a descortesia do magistrado de Liverpool[7], quando me lembro do tratamento que recebi por parte de meus próprios parentes, que, mesmo conhecendo meu caráter impecável, ouviram a minha história com um sorriso indulgente, como quem se diverte com os delírios de um doido varrido. Essa injúria sobre a minha honestidade resultou numa discussão entre mim e John Vanburguer, o irmão de minha esposa, e reforçou em mim a resolução de deixar o assunto mergulhar no esquecimento – determinação que só venho a alterar devido à insistência de meu filho. Pois bem, de modo a tornar minha narrativa compreensível, preciso retroceder a um ou dois episódios do meu passado, que jogarão luz sobre os eventos subsequentes.

Meu pai, William K. Jephson, era um pregador de uma seita protestante chamada Irmãos de Plymouth[8], além de ser um dos mais respeitados habitantes da cidade de Lowell. Como muitos outros puritanos da Nova Inglaterra[9], era um determinado opositor da escravidão e foi de seus lábios que recebi essas lições que inspiraram todas as ações de minha vida. Enquanto estive estudando medicina na Universidade de Harvard, ganhei fama de ferrenho abolicionista; e quando, depois de me formar, comprei uma parte da clínica do Dr. Willis, no Brooklin, dediquei, sem deixar de lado minhas obrigações profissionais, um tempo considerável à causa que me apaixonava, tendo meu panfleto “Onde está o teu irmão?” (Swarburger, Lister & Cia., 1859) atraído bastante atenção do público.

Quando a guerra estourou, deixei o Brooklin e segui o 113º regimento de Nova York em campanha. Participei da batalha de Bull’s Run e da de Gettysburg[10]. Por fim, acabei sendo severamente ferido em Antietam[11] e teria provavelmente morrido, não fosse a generosidade de um cavalheiro do Sul, chamado Murray, que me levou para sua casa e me abrigou com todo o conforto. Graças à sua caridade e aos cuidados que recebi de seus criados negros, em pouco tempo eu já me sentia capaz de andar pela fazenda com o auxílio de uma bengala. Foi durante esse período de convalescência que ocorreu um incidente que está intimamente ligado à minha história.

Entre as mais assíduas criadas que ficavam à cabeceira de meu leito durante minha recuperação, havia uma velha negra que parecia exercer considerável autoridade sobre as outras. Ela era extremamente atenciosa comigo e eu descobri, pelas poucas palavras que trocamos, que ela ouvira falar de mim e que sentia gratidão pelo meu trabalho em prol de seu povo oprimido.

Um dia, enquanto eu estava sozinho na varanda, sentado ao sol e imaginando quando conseguiria me reunir ao exército do general Grant, fui surpreendido por essa velha criatura se arrastando em minha direção. Depois de olhar para todos os lados e certificar-se de que estávamos a sós, ela remexeu na gola do vestido e dali retirou uma bolsinha de camurça que estava presa em seu pescoço por um cordão branco.

– Mestre – ela disse, abaixando-se e sussurrando em meu ouvido – eu vai morrer logo. Eu muito velha. Não vai ficar mais muito tempo na fazenda do amo Murray.

– Você pode viver muito tempo ainda, Marta – respondi. – Você sabe que sou um médico. Se está se sentindo mal, diga-me o que sente e vou tentar achar um remédio.

– Preta velha não quer viver. Quer morrer. Quer visitar Pai do Céu – ela replicou, com a voz de quem eleva a Deus um dos cânticos religiosos típicos dos negros americanos. – Mas, mestre, eu tem uma coisa que precisa ficar aqui quando eu for. Não pode levar comigo ao passar para o outro lado. Coisa muito preciosa. Mais preciosa e mais sagrada do que todas as coisas do mundo. Eu, pobre preta velha, ter isso porque meu povo, grande povo, na velha África. Mas mestre não vai entender isso do mesmo jeito que gente negra entende. Meu pai deu coisa para mim, pai dele deu para ele, mas eu, para quem eu vai dar? Pobre Marta não tem filhos, nem parentes, nem ninguém.