Embora escrito na primeira pessoa por um Narrador cujo nome (Marcél) só aparece em duas ocasiões, ambas em A Prisioneira não convém enxergar no romance de Proust uma autobiografia ou um livro de memórias. Isto porque, em primeiro lugar, o Marcel narrador não se confunde com o Marcel autor, sendo como os demais apenas uma personagem de ficção; e é nessa qualidade que assume a função de protagonista, em torno ao qual gira todo o universo ficcional da obra proustiana. Além disso, o conhecimento, da parte do Narrador, de fatos e locais que se ligam à vida de Proust contribui para aprimorar as relações do leitor com o Marcel narrador, tornando mais fácil para aquele assimilar a transfiguração da realidade em ficção no âmbito do romance.
A realidade do romance é fundada na realidade objetiva, topográfica, geográfica, histórica, etc., da vida de Proust. Porém, a transposição dessa realidade para o romance obedece a leis internas da narrativa e sobretudo à imaginação criadora do autor. Assim, lugares e pessoas que pertencem ao universo de Em Busca do Tempo Perdido não correspondem mecanicamente a lugares e pessoas da vida real. Para descrever Combray ou Balbec, por exemplo, Proust tomou emprestadas características próprias de cidadezinhas francesas que conhecia e visitou várias vezes. O mesmo quanto aos personagens. Por exemplo, os traços de Charles Swann derivam de duas ou mais pessoas da vida real, além de aspectos da personalidade do mesmo Proust. Vinteuil e sua obra musical contêm vestígios da vida e da obra de Debussy, Saint-Saens e outros compositores eruditos que Proust admirava. E assim por diante.
Outras vezes ocorre o contrário. Uma mesma pessoa da vida real empresta seus traços e características a duas ou mais personagens. Uma amiga de Proust, Louisa de Mornand, por exemplo, forneceu traços à composição tanto de Albertine como de Rachel. Desse modo, no romance a não ser nos casos da mãe e da avó do Narrador (que representam de modo muito próximo a mãe e a avó materna de Proust) e no de algumas personagens secundárias-, uma pessoa A não corresponde jamais apenas a um dado personagem B, mas também tem seus traços disseminados nos personagens C, D, E, etc.
Tempo e memória
Os principais temas de Em Busca do Tempo Perdido são o Tempo e a Memória. Proust era um obcecado pelas questões relativas ao tempo. Preocupava-o o passar dos anos que leva tudo de arrasto, modificando, transformando, vencendo e extinguindo todos os sentimentos, paixões, amores, idéias, opiniões e até os corpos. Com o passar do tempo, o esquecimento e a indiferença sobem das profundezas do indivíduo para destruir tudo aquilo que o ser humano julgara eterno e inamovível. Nem mesmo aquele núcleo invariável do espírito, que a filosofia clássica acreditava formar a nossa personalidade, resiste à ação do tempo. Submerso no tempo, o homem se desagrega por dentro e nada mais subsiste, no velho, daquele jovem que um dia amou, fez uma revolução, ocupou altos cargos na vida pública ou na iniciativa privada. E é em função do transcurso do tempo que as personagens de Proust apresentam aspectos diversos no decorrer da narrativa, mudando de idéias, de sentimentos, de gostos, como também mudam o seu físico, envelhecem. Ou desenvolvem nova personalidade mais criativa, mais madura. O pintor que no grupo dos Verdurin era denominado, por zombaria, " Sr. Biche", em No Caminho de Swann, revela-se mais tarde, já maduro, como o famoso pintor Elstir, de À Sombra das Moças em Flor.
Mas o tempo prossegue em sua tarefa destruidora; e como recuperá-lo? É nesse ponto que intervém a Memória, outro tema básico da obra de Proust. Não a memória comum, produto da nossa inteligência, e que a um mínimo esforço nos restitui fatos já passados. Pois esta memória, que depende da nossa vontade, é como um simples arquivo: fornece apenas fatos, datas, números e nomes. Mas não as sensações que experimentamos outrora e que não habitam a nossa consciência. Tais sensações jazem mais fundo e só são despertadas pelo que Proust denominou memória involuntária: é a que não depende do nosso esforço consciente de recordar, que está adormecida em nós e que um fato qualquer pode fazer subir à consciência.
1 comment