Só Deus sabe se sou feliz ou não. O que vema ser felicidade?

Ele lhe dirigiu um meio sorriso, a despeito do seu humorsombrio, da sua irritação. Ela dava a impressão, como sempre, de estar a pesar as coisas, umas contra as outras, a compará-las antes de decidir-se.

– Felicidade – disse, afinal, enigmaticamente, mais comose estivesse sopesando a palavra, e depois fez uma pausa.Uma longa pausa, como se considerasse a felicidade sob todos os seus aspectos. – Hilda esteve aqui hoje – observou, desúbito,como se jamais a palavra “felicidade”tivesse sido pronunciada. Trouxe Bobbie. Ele está um meninão agora.

Ralph observou, divertido, mas com alguma ironia também, que ela se preparava para escapar rapidamente dessaperigosa tentativa de intimidade deslizando para tópicos deinteresse geral e doméstico. Não obstante, refletiu, ela era aúnica pessoa da família com quem achava possível discutir afelicidade, embora tivesse podido muito bem discutir felicidade com Mrs. Hilbery logo no primeiro encontro. Olhoucriticamente para Joan, e desejou que ela não tivesse esse aspecto tão provinciano ou suburbano, o vestido fechado,verde, de gola alta, o debrum desbotado, sempre tão paciente, quase resignada. Teve vontade de falar-lhe dos Hilberysa fim de insultá-los, porque na batalha em miniatura que tão freqüentemente se trava na vida entre duas impressõessubseqüentes, a vida dos Hilberys começava na sua mente apassar à frente da vida dos Denhans,e ele queria ter certezade que havia alguma qualidade em que Joan suplantasseMiss Hilbery infinitamente. Quisera sentir que sua irmã eramais original e tinha muito mais vitalidade que MissHilbery. Mas sua principal impressão de Katharine agoraera a de uma pessoa de grande vitalidade e compostura. E naquele momento não podia ver que vantagem levaria Joanpor ser a neta de um negociante e por ter de ganhar a própria vida. A infinita sordidez e melancolia da vida de todoseles oprimiam-no, a despeito de sua crença fundamental deque, como família, eram de algum modo notáveis.

– Seria bom que você falasse à mãe? – perguntou Joan.

– Porque, sabe, a coisa tem de ser resolvida, de uma maneiraou de outra. Charles tem de escrever ao Tio John, se é quevai para lá.Ralph suspirou com impaciência.

– Suponho que não importa muito, de um jeito ou de outro! – exclamou. – Ele está fadado à miséria, no fim de contas. Um ligeiro rubor despontou na face de Joan.

– Você sabe que o que está dizendo é uma tolice – disse ela. – Não faz mal a ninguém ganhar a própria vida. Estoumuito contente de ter de ganhar a minha.Ralph alegrava-se que ela visse as coisas assim, e desejavaque continuasse, mas perversamente acrescentou:

– Não será apenas por ter esquecido como divertir-se? Você nunca teve tempo para qualquer coisa boa...

– Como, por exemplo?

– Bem. Fazer passeios, ouvir música, ler livros, ver gente interessante. Você nunca faz nada que verdadeiramente valha a pena. Como eu também não faço.

– Sempre achei que você poderia tornar este quarto muito mais simpático, se assim quisesse – observou ela.

– E que importa o quarto que eu tenha quando devo passar os melhores anos da minha vida minutando escrituras num cartório?

Você disse dois dias atrás que achava o direito extremamente interessante.

E é mesmo, quando se tem vagares para aprofundá-lo um pouco.

(– Isso é Herbert, indo para a cama agora – interrompeuJoan, ao ouvir uma porta que batia violentamente, no patamar da escada. – E não vai querer levantar-se de manhã.)

Ralph olhou para o teto e apertou os lábios com força.Por que, perguntou-se, não podia Joan, por um só minuto,desviar a mente dos detalhes da vida doméstica? Parecia-lhe que a cada dia ela ficava mais emaranhada neles, capaz apenas de vôos mais infreqüentes e curtos para o mundo exterior. E, todavia, contava tão-somente trinta e três anos.

– Você visita alguém, hoje em dia? – perguntou abruptamente.

Raras vezes tenho tempo. Por que pergunta?

– Pode ser uma boa coisa conhecer gente nova. Só isso.

– Pobre Ralph – disse Joan com um sorriso. – Você pensa que sua irmã está ficando muito velha e muito estúpida.É isso, não é?

– Não penso nada disso – disse ele com vigor.Mas corou.

– A verdade é que você vive uma vida de cachorro, Joan.Quando não trabalha no escritório, ocupa-se do resto denós. E eu não sou lá muito bom para você, acho.

Joan levantou-se e ficou por um momento a aquecer as mãos e, aparentemente, a resolver se devia dizer mais alguma coisa ou não.Um sentimento de grande intimidade uniuirmão e irmã, e as rugas semicirculares por cima dos olhosdeles desapareceram. Não, nada mais havia por dizer, deuma parte ou de outra.

Joan afagou a cabeça do irmão ao passar por ele,murmurou boa noite e deixou o quarto. Por alguns minutos, depoisque ela saiu,Ralph permaneceu inativo,com a cabeça apoiada na mão.