Gradualmente, porém, de novo o pensamentobrilhou em seus olhos, a ruga reapareceu-lhe no cenho, aagradável impressão de camaradagem e de velha simpatiaesmaeceu, e ele foi deixado a pensar sozinho.

Após algum tempo, abriu um livro e leu com aplicação,consultando uma ou duas vezes o relógio, como se se tivesseproposto uma tarefa a ser cumprida em prazo certo. De vezem quando, ouvia vozes na casa, e a batida de portas que sefechavam nos quartos de dormir, o que mostrava que o edifício, em cujo topo se achava sentado, era habitado em todasas suas celas. Quando bateu meia-noite, Ralph fechou o livro e, com uma vela na mão, desceu até o térreo para verificar se todas as luzes estavam apagadas e todas as portastrancadas. Era uma casa vivida e gasta que ele examinava,como se os seus habitantes tivessem raspado tudo o quepudesse ser luxo e abundância até os últimos limites da decência; e à noite, carente de vida, os vazios e as velhas nódoas eram desagradavelmente visíveis. Katharine Hilbery – pensou – condená-la-ia de imediato.

3

Denham havia acusado Katharine Hilbery de pertencer auma das mais ilustres famílias da Inglaterra; se qualquer pessoa se der ao trabalho de consultar O Gênio Hereditário, de Mr. Galton, verá que a asserção não ficara longe da verdade.Os Alardyces, os Hilberys, os Millingtons e os Otways pareciam provar que o intelecto é um bem que pode ser lançadode um membro para outro dentro de um certo grupo, e issoquase indefinidamente, e com a aparente garantia de que obrilhante dom será agarrado com segurança e conservadopor nove dentre dez representantes da raça privilegiada.

Houvera conspícuos juízes e almirantes, advogados e servidores públicos por alguns anos antes que da riqueza dosolo brotasse essa culminância, essa flor raríssima, a mais rara de que uma família se possa gabar: um grande escritor,um poeta eminente entre os poetas ingleses, um Richard Alardyce; e tendo-o produzido, provaram uma vez mais asespantosas virtudes da sua raça, prosseguindo sem desfalecimento em sua habitual tarefa de gerar grandes homens.Navegaram até o Pólo Norte com Sir John Franklin, galoparam em socorro de Lucknow com Havelock. E quandonão eram faróis, firmemente fundados na rocha para guiar asua geração, eram prestimosas velas, a iluminar os aposentosordinários da vida diária. Era pôr o dedo sobre uma profissão qualquer,e lá estava um Warburton ou um Alardyce,umMillington ou um Hilbery, sempre em posição de autoridade e proeminência.

Pode ser dito, na verdade, que, sendo a sociedade inglesa o que é, não se exige nenhum grande mérito, uma vez que setenha um grande nome, para ocupar uma posição onde, demaneira geral, é mais fácil ser eminente que obscuro. E seisso é verdade com referência aos filhos, até mesmo as filhas, inclusive no século XIX, têm oportunidade de tornar-sepessoas de nomeada, filantropas e educadoras se são solteironas, esposas de homens eminentes, quando casam. É verdade que houve umas poucas lamentáveis exceções a essaregra no clã dos Alardyces, o que parece indicar que os filhos mais moços de tais estirpes degeneram mais rapidamente que os filhos de pais e mães comuns, como se issofora uma espécie de alívio para essas casas. De modo geral,contudo, nos primeiros anos do século XX, os Alardyces eseus parentes mantinham as cabeças confortavelmente forad’água. Podem ser encontrados no cume das profissões, comabreviaturas honoríficas depois dos seus nomes: pontificamcom secretárias particulares em luxuosos escritórios públicos; escrevem sólidos volumes de encadernação escura, publicados pelas editoras das duas grandes universidades; equando um deles morre, há uma boa chance de que outro dafamília lhe escreva a biografia.

Agora: a fonte dessa nobreza toda era, naturalmente, o poeta, e seus descendentes imediatos; em conseqüência,investiam-se de maior lustre que os ramos colaterais. Mrs.Hilbery, em virtude da sua posição como filha única do poeta, era espiritualmente a cabeça da família. E Katharine,sua filha, tinha graduação de certo modo superior entre todos os primos e afins, e mais ainda por também ser filhaúnica. Os Alardyces se haviam casado uns com os outros e entrelaçado a tal ponto que a sua descendência era, de regra,copiosa, e tinham o hábito de reunir-se regularmente em uma das casas da família para refeições e celebrações familiais, que, com o tempo, assumiram um caráter meio sacral,passando a ser religiosamente observadas como o são osdias santos de guarda ou de jejum na Igreja.

Em tempos idos, Mrs. Hilbery conhecera todos os poetas, todos os romancistas, todas as belas mulheres e todos os homens notáveis do seu tempo. Estando todos mortos ourecolhidos a uma glória repleta de achaques, ela fez da própria casa o ponto de encontro dos parentes, com os quaislamentava que tivessem passado os grandes dias do séculoXIX, quando cada um dos departamentos das letras e dasartes se fazia representar na Inglaterra por dois ou três nomes ilustres. Por onde andam hoje os seus sucessores? – perguntava ela, e a ausência de qualquer poeta ou pintor ouromancista de calibre respeitável no presente era um temasobre o qual ela gostava de ruminar, num clima crepuscularde afável reminiscência, difícil de interromper se a necessidade o exigisse. Mas ela estava longe de fazer ver à novageração a sua inferioridade. Ela recebia calorosamente osjovens em sua casa, contava-lhes suas histórias, dava-lhessoberanos de ouro e sorvetes e bons conselhos, e tecia em torno deles romances que as mais das vezes não tinhamqualquer fundamento.

A qualidade do seu alto nascimento permeou a consciência de Katharine, provinda de uma dúzia de fontes diferentes tão logo foi capaz de perceber alguma coisa. Acimada lareira do seu quarto de menina havia uma fotografia dotúmulo do seu avô no Canto dos Poetas, e foi-lhe dito, num desses momentos de confidência dos mais velhos, que sãotremendamente impressionantes para a mente de uma criança, que ele estava enterrado ali por ser “um grande homem”. Mais tarde, por ocasião de um aniversário, ela foiconduzida pela mãe, através do nevoeiro, até um belo fiacre,e foi-lhe dado um generoso buquê de vívidas e perfumadasflores, para depor na sua tumba. As velas da igreja, os cânticos, a música de órgão, tudo era, a seu ver, em honra dele.Muitas e muitas vezes foi levada até o salão para receber abênção de algum horrendo velhote famoso, que, mesmo aseus olhos de criança, parecia uma figura à parte, todo encolhido e segurando uma bengala, diferente, e refestelado, porcima de tudo, ao contrário de uma visita comum, na própriapoltrona de seu pai presente, diferente de si mesmo também, um tanto excitado e cheio de mesuras. Essas formidáveis criaturas, esses velhos costumavam pegá-la nos braços,olhar intensamente dentro dos seus olhos antes de abençoála, e dizer-lhe que fizesse atenção e fosse uma boa menina,procurando descobrir em seu rosto alguma coisa de Richard quando pequeno. Isso atraía para ela um beijo fervoroso damãe, e aí era mandada de volta para o quarto, toda orgulhosa, e com o misterioso sentimento de um estado de coisas importante e inexplicado, cujo segredo só o tempo gradualmente desvendou.

Havia sempre visitas,tios e tias e primos da lndia,a seremreverenciados simplesmente pelo parentesco, e outros dasolitária e formidável classe que seus pais lhe mandavam “recordar pela vida inteira”. Por esses processos, e pelo fato deouvir falar constantemente de grandes homens e de suasobras, suas mais antigas concepções do mundo incluíam umaugusto círculo de seres aos quais ela dava os nomes deShakespeare, Milton, Wordsworth, Shelley, e assim pordiante, que eram, por alguma razão, muito mais próximosdos Hilberys que dos outros. Formavam uma espécie de di-visa à sua visão de vida, e desempenhavam importante papelna determinação do que era bom ou mau em seus própriospequenos negócios. O fato de descender de um desses deuses não era surpresa para ela, mas motivo de satisfação, até que, com os anos, os privilégios da sua classe passaram a seraceitos como naturais, e certas desvantagens fizeram-se manifestas.Talvez seja meio deprimente herdar,não terras,masum exemplo de virtude espiritual e intelectual; talvez o quehá de conclusivo num ancestral famoso seja um pouco desencorajador para os outros, que correm o risco de lhe serem comparados. Parecia que, tendo florido tão esplendidamente,nada fosse possível agora para a cepa senão uma uniformeprodução de bom talo verde e boa folha. Por essas razões, epor outras, Katharine tinha seus momentos de depressão.