Oglorioso passado, no qual homens e mulheres adquiriam proporções acima das comuns, intrometia-se por demais nopresente, diminuindo-o pela comparação, e isso com umaconstância que só podia ser desanimadora para quem tinhade tentar viver com a idade de ouro morta e enterrada.

Ela era levada a considerar tais assuntos mais do que seria natural, em primeiro lugar por causa da absorção dasua mãe neles e em segundo porque grande parte do seutempo era empregada em imaginação, na companhia dosmortos, desde que ajudava a mãe a compor a vida do grandepoeta. Quando tinha a idade de dezessete ou dezoito, querdizer, há dez anos, sua mãe anunciara, entusiasticamente, que agora, com Katharine para ajudá-la, a biografia serialogo publicada. A notícia filtrou para os jornais literários e,por algum tempo, Katharine trabalhou com um sentimentode grande orgulho e auto-realização.

Mais tarde, no entanto, pareceu-lhe que não faziam nenhum progresso, o que era estranho, considerando que ninguém com uma sombra de temperamento literário tinhadúvidas de que as duas dispunham em casa de elementospara comporem uma das maiores biografias jamais escritas.Prateleiras e caixas estavam abarrotadas do precioso material. As vidas particulares das pessoas mais interessantes jaziam enroladas em molhos amarelados de manuscritos em escrita cerrada. Além disso, Mrs. Hilbery conservava na cabeça uma visão tão clara daquele tempo como talvez ninguém mais dentre os remanescentes, e sabia comunicar àspalavras aquelas centelhas e aquele frêmito de vida capazesde dar-lhes quase a substância da carne. Ela não mostravadificuldade em escrever, e enchia uma página toda manhã,tão instintivamente quanto um tordo canta. E, no entanto, com tudo isso para mover e inspirar, e a mais devota intenção de completar o trabalho, o livro ainda permanecia inescrito. Os papéis se acumulavam, sem que a tarefa avançassegrande coisa, e em momentos de depressão Katharine duvidava que algum dia conseguissem produzir algo digno de apresentar ao público. Em que jazia a dificuldade? Não nomaterial de que dispunham, hélas! –, não nas suas pretensões, mas em algo mais profundo, na sua própria inaptidãoe, acima de tudo, no temperamento de sua mãe. Katharinecalculava que nunca a vira escrever mais que dez minutosseguidos. As idéias lhe vinham principalmente quando estava em movimento. Ela apreciava, então, perambular pelasala com um pano de limpeza na mão, e se detinha parapolir as lombadas de livros já lustrosos, refletindo e romantizando enquanto assim fazia. De súbito, a frase justa ou oponto crucial lhe ocorriam, ela largava sua flanela e escrevia,extática prendendo o fôlego, por uns poucos momentos.Mas então esse humor passava, ela procurava o pano outravez, e limpava de novo os velhos livros. Esses surtos de inspiração nunca ardiam de maneira sustentada, mas tremeluziam sobre a gigantesca massa do assunto tão caprichosamente quanto um fogo-fátuo, acendendo ora num ora emoutro ponto.O máximo que Katharine podia fazer era manter em ordem as páginas do manuscrito de sua mãe; arranjálas, porém, de modo a que o décimo sexto ano da vida de Richard Alardyce sucedesse ao décimo quinto, estava acimadas suas forças. E, todavia, eram tão brilhantes os parágrafos, vazados num fraseado tão nobre, tão vívidos naquilo que iluminavam, que os mortos pareciam encher o quarto.Lidos em seqüência, produziam uma espécie de vertigem e obrigavam-na a pensar com desespero no que poderia fazercom eles. Sua mãe recusava-se também a enfrentar decisões radicais sobre o que deveria ficar no texto, por exemplo, e o que teria de ser eliminado. Não conseguia decidir-se atéonde o público devia conhecer a verdade sobre a separaçãodo poeta de sua mulher. Escreveu passagens que serviam para cada caso, depois gostou tanto delas que não pôde determinar a rejeição de nenhuma.

Mas o livro precisava ser escrito. Era um dever que tinham para com o mundo, e para Katharine, pelo menos,representava mais que isso, pois se não conseguiam, as duas, completar um livro, então não tinham direito a essa posição de privilégio. Suas vantagens tornaram-se de ano em ano mais gratuitas e imerecidas. Além disso, cumpria estabelecer acima de qualquer dúvida que seu avô fora um grande homem.

Aos vinte e sete anos, tais pensamentos já lhe eram familiares. Abriam caminho no seu espírito quando se sentavadiante da mãe, pela manhã, em face da mesa repleta de pa-cotes de velhas cartas e bem suprida de lápis, tesouras, vidrosde cola, elásticos, grandes envelopes, e outros artigos úteis àmanufatura de livros. Pouco antes da visita de RalphDenham, Katharine resolvera experimentar o efeito de re-gras estritas sobre os hábitos maternos de composição literária. Deveriam sentar-se toda manhã às dez horas nas suas respectivas mesas com um longo período matinal sem outros compromissos diante delas. Deveriam manter os olhosgrudados no papel, e nada as tentaria a falar, salvo a batidada hora, quando, então, por dez minutos, poderiam permitir-se descansar. Se essas regras fossem observadas durante um ano, calculou numa folha de papel, o livro estaria certamente concluído, e depôs esse esquema diante da mãe com o sentimento de que muito da tarefa estava cumprido. Mrs.Hilbery examinou a folha de papel cuidadosamente. Depois, bateu palmas e exclamou com o maior entusiasmo:

– Muito bem, Katharine! Que boa cabeça para negócios você tem! Agora, vou ter isso sempre diante de mim, e tododia farei uma pequena marca no meu caderninho de notase, assim, no último dia, deixe-me pensar, o que faremos paracelebrar o último dia? Se não fosse inverno,eu a levaria a dar uma volta pela Itália. Dizem que a Suíça é adorável na neve,exceto pelo frio.