Mas, como diz você, o importante é terminar o livro. Agora, deixe-me ver...
Quando inspecionaram seus manuscritos,que Katharine pusera em ordem, encontraram uma situação capaz de liquidar seu otimismo, se não se tivessem, justamente, decidido pela reforma. Encontraram, em primeiro lugar, grandevariedade de imponentes parágrafos com os quais se abririaa obra; muitos destes, é verdade, estavam inacabados, e pareciam arcos de triunfo apoiados numa perna só; mas, comofez notar Mrs. Hilbery, podiam ser retocados em dez minutos, bastava que ela se concentrasse. Depois, havia um relatosobre a antiga casa dos Alardyces, ou melhor, sobre a primavera em Suffolk, muito bem escrito, embora não essencial à história. Katharine, todavia, arrolara uma série de nomes e datas, de modo que o poeta foi posto no mundo competentemente e seu nono ano atingido sem maiores tropeços.Depois disso, a senhora Hilbery desejava, por razões sentimentais, introduzir as lembranças de uma velha senhora muito fluente, que fora criada na mesma aldeia, mas estas Katharine resolveu que tinham de ser eliminadas. Talvezfosse aconselhável incluir aí um aperçu da poesia contemporânea, contribuição de Mr. Hilbery e, em conseqüência, terso, erudito e em completo descompasso com o resto. MasMrs. Hilbery foi de opinião que esse texto era também pordemais despojado e fazia que as pessoas se sentissem como meninas de colégio numa sala de aula, e isso simplesmente não concordava com seu pai. Foi posto de lado. Veio, então, o período da primeira maturidade, quando várias aventurasamorosas teriam de ser reveladas ou escondidas. Aqui, denovo, Mrs. Hilbery mostrava-se indecisa, e um grosso pacote de manuscritos foi engavetado para consideração futura.
Muitos anos foram, em seguida, omitidos, porque Mrs.Hilbery encontrara alguma coisa nesse período que lhe parecera de mau gosto e preferira confiar em suas próprias memórias de infância. Daí por diante, pareceu a Katharine que
o livro se tornara uma louca dança de fogos-fátuos, informe,sem continuidade e, até, sem coerência, sem qualquer tentativa de redigir uma narrativa seguida. Havia, assim, vinte páginas sobre o gosto de seu avô por chapéus, um ensaio sobrea porcelana contemporânea,um longo relato de uma expedição pelo campo num dia de verão, quando haviam perdido otrem, junto com visões fragmentárias de toda espécie de homens e mulheres famosos, visões em parte imaginárias e em parte autênticas. Havia, ademais, milhares de cartas, e umamassa de memórias fiéis (amareladas a essa altura) oferecidaspor velhos amigos, as quais tinham de ser retiradas dos seusenvelopes, e aproveitadas em algum lugar, ou eles se ofenderiam. Tantos volumes haviam sido escritos sobre o poetadesde a sua morte que lhes cabia igualmente retificar um grande número de inexatidões e desvirtuamentos da verdade, o que implicava minuciosas pesquisas e muita correspondência. Às vezes Katharine ficava a remoer tudo isso, sentindo-se meio esmagada entre seus papéis. Às vezes, sentia queera necessário,para sua própria existência,libertar-se do passado; ou que o passado deslocara completamente o presente,de modo que, ao retomar a vida comum depois de uma manhã inteira entre os mortos, o presente se revelava uma composição rala e inferior.
O pior de tudo é que ela não tinha qualquer aptidão paraa literatura. Detestava frases. Tinha, até, alguma naturalantipatia por aquele processo de auto-exame, por aqueleperpétuo esforço de entender os próprios sentimentos eexpressá-las em palavras, de maneira bela, apropriada, vigorosa, coisa que constituía tão grande porção da existência desua mãe. Ela, ao contrário, inclinava-se a calar; esquivava-sea expressar-se mesmo falando, quanto mais escrevendo.Como tal disposição era das mais convenientes numa família dada à manufatura de frases, e parecia indicar uma correspondente capacidade para a ação, ela fora, desde a infância, encarregada dos negócios da casa. Tinha a reputação,que nada em suas maneiras contradizia, de ser a mas práticadas criaturas. Decidir os menus, dirigir os empregados, pa-gar as contas, conseguir que todos os relógios batessem àmesma hora e que as jarras estivessem sempre cheias de flores frescas eram tidos como predicados naturais dela. Mrs.Hilbery costumava dizer que isso também era poesia, só queàs avessas. Desde tenra idade, tivera ela de funcionar ainda em outra capacidade: aconselhando sua mãe, dando-lheapoio, de maneira geral. Mrs. Hilbery poderia perfeitamente sobreviver sozinha no mundo, fora o mundo o que elenão é. Estava admiravelmente preparada para a vida em outro planeta.
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