Exceto pelo gênio natural que mostrava para osnegócios, não havia outro uso para ela aqui embaixo. Seurelógio, por exemplo, era-lhe inesgotável fonte de surpresas,e aos sessenta e cinco anos ficava ainda pasma com a ascendência que normas e regras desempenhavam nas vidas dasoutras pessoas. Jamais aprendera sua lição, e tinha de serpunida constantemente pela sua ignorância. Mas, como aessa ignorância combinava-se uma admirável intuição inata,que via mais fundo as coisas, quando as via, não era possívelclassificar Mrs. Hilbery entre os estúpidos; pelo contrário,tinha um jeito de parecer a pessoa mais atilada de um salão.No todo, porém, achava indispensável apoiar-se na filha.

Katharine,então,era membro de uma grandíssima profissão, que não tem, ainda, título, e a que quase não se faz justiça. Embora os labores de moinho e fábrica não sejam maispesados nem seus resultados de maior utilidade para o mundo. Ela vivia em casa. Fazia-o muito bem, aliás. Qualquerpessoa que fosse à casa de Cheyne Walk sentia que era umlugar organizado, bem arranjado, bem dirigido – um lugaronde a vida fora treinada para aparecer sob suas melhorescores e, embora composta de elementos díspares, parecerharmoniosa e dotada de caráter próprio. Talvez fosse esse o maior triunfo da arte de Katharine: fazer que o caráter deMrs. Hilbery predominasse. Ela e Mr. Hilbery davam a impressão de serem apenas um rico pano de fundo para as qualidades mais salientes de sua mãe.

Sendo, assim, o silêncio tão natural para ela quanto a elaimposto, a outra única observação que os amigos de sua mãe tinham o costume de fazer era que não se tratava de umsilêncio estúpido ou indiferente. Mas a que qualidade tal silêncio devia o seu, caráter, desde que tinha um caráter de alguma espécie, jamais ninguém se preocupou em indagar.Sabia-se que ela ajudava a mãe a produzir um grande livro.Sabia-se que dirigia a casa. Era, certamente, bela. Isso bastava para classificá-la satisfatoriamente. Mas teria sido umasurpresa, não só para as outras pessoas mas para a própriaKatharine, se algum relógio mágico pudesse marcar os minutos gastos numa ocupação inteiramente diferente das ostensivas. Sentada com velhos papéis diante dos olhos, tomava parte numa série de cenas, tais como o adestramento de pôneis selvagens nas pradarias dos Estados Unidos, o comando de um vasto navio num furacão junto a um negropromontório ou rochedo, ou em outros mais pacíficos, porém marcados pela mesma completa emancipação do ambiente diário e, não seria preciso dizê-lo, por uma extraordinária competência nessa nova vocação. Quando liberta dasaparências de pena e papel, de composição e biografia, elavoltava sua atenção para direção mais legítima, embora,curiosamente, tivesse mil vezes preferido confessar esses desatinados sonhos de furacão ou pradaria do que o fato deentregar-se, sozinha em seu quarto do segundo andar cedopela manhã e às horas mortas da noite, ao estudo... das matemáticas. Nenhuma força na Terra seria capaz de fazê-laconfessar isso. Seus atos, quando assim ocupada, eram furtivos e secretos, como os de um animal de hábitos noturnos. Bastava que soassem passos na escada e ela enfiava o papelentre as páginas de um grande dicionário grego que furtarado quarto do pai justamente para esse fim. Só à noite, na verdade, sentia-se suficientemente segura para concentrar amente ao máximo.

Talvez fosse a qualidade pouco feminina da ciência que a levasse, instintivamente, a esconder seu amor por ela.Contudo, a razão mais profunda era que, no seu entender, amatemática opunha-se diametralmente à literatura. Não seteria importado de confessar o quanto preferia a exatidão, aimpessoalidade estelar dos algarismos à confusão e indefinição da prosa mais requintada. Havia algo um tanto indecoroso nessa oposição à tradição da família. Algo que fazia quese sentisse cabeça-dura e, assim, mais do que nunca disposta a fechar seus desejos à vista alheia e cultivá-los com extraordinário carinho. Muitas e muitas vezes pensava em problemas quando devera estar pensando no avô. Ao acordardesses transes, via que a mãe, também, mergulhara em al-gum devaneio, tão visionário quanto o seu, pois as pessoasque nele tomavam parte de há muito se contavam entre osmortos. Mas vendo seu próprio estado espelhado no rostode Mrs.