Hilbery, Katharine se obrigava a acordar com umsentimento de irritação. Por mais que a admirasse, sua mãeera a última pessoa com quem desejaria parecer-se. Seu senso comum se recompunha, então, quase brutalmente, e Mrs.Hilbery, olhando-a com seu estranho olhar de soslaio, meio malicioso meio terno, comparava-a “àquele maroto do seuTio Peter”, o velho juiz, que se ouvia ditando sentenças demorte no banheiro. “Graças a Deus, Katharine, eu não tenho uma gota dele em mim!”

4

Por volta das nove horas da noite, toda segunda quartafeira, Miss Mary Datchet tomava a mesma resolução: a denunca mais ceder seu apartamento, fosse qual fosse o motivo invocado. Sendo, como era, de bom tamanho e convenientemente situado numa rua quase que só de escritórios,a um passo do Strand, gente que queria fazer uma reunião,para fins de divertimento, ou para discutir arte ou a reformado Estado, tinha o hábito de pedir a Mary que lhe emprestasse a sala. Ela sempre recebia o pedido com a mesma rugade aborrecimento simulado, que logo se dissolvia numa espécie de dar de ombros, meio bem-humorado meio agastado, como um cachorro grande que, atormentado por crianças,sacode as orelhas.Acabava emprestando a sala,mas comuma condição: a de que todos os arranjos fossem feitos porela. A reunião quinzenal de uma sociedade dedicada à livre discussão de tudo implicava muita arrumação, muito móvelmudado de lugar e empurrado contra a parede, e na retiradadas coisas frágeis e preciosas para lugar seguro.Miss Datchetera perfeitamente capaz de carregar uma mesa de cozinhaàs costas, pois que, embora bem proporcionada e bem vestida, aparentava força invulgar e determinação.

Contava, talvez, vinte e cinco anos de idade, mas pareciamais velha,porque ganhava,ou tentava ganhar,a própria vida,e já trocara o ar de espectadora irresponsável pelo do soldadoraso de um exército de trabalhadores.Seus gestos pareciam tersempre um objetivo qualquer;os músculos em torno dos olhose dos lábios eram firmes, como se os sentidos tivessem sido disciplinados e estivessem prontos para atender a um chamado.Adquirira,no processo,duas tênues rugas entre as sobrancelhas, não por inquietar-se, mas por pensar; era evidente quetodos os instintos femininos de cativar, consolar e encantar cruzavam-se com outros de modo algum peculiares a seu sexo.No resto, tinha olhos castanhos, era um pouco desajeitada demovimentos, e sugeria origens camponesas, ancestrais respeitáveis e trabalhadores, mais provavelmente homens de fé e deintegridade do que de dúvida e fanatismo.

Ao cabo de um dia de trabalho bastante duro, era de certo modo um esforço limpar o próprio quarto, tirar o colchãoda própria cama, para deitá-lo no chão, encher um bule comcafé frio e passar um pano na mesa comprida deixando-apreparada para receber pratos e xícaras e pires, com pirâmides de pequenos biscoitos cor-de-rosa nos intervalos; mas,efetuadas essas alterações, Mary sentiu-se possuída de tal leveza de espírito que era como se tivesse tirado dos ombrostodo o peso das suas horas de labuta e envergado alguma fina veste de seda brilhante. Ajoelhou-se em frente ao fogo econtemplou o quarto. A luz, embora doce, tinha uma clararadiância, coada por abajures de papel amarelo e azul, e oquarto, mobiliado com dois grandes sofás informes que maissemelhavam molhos de feno, parecia extraordinariamenteamplo e tranqüilo. Mary foi levada a pensar nas alturas de uma colina de Sussex e no saliente círculo verde de algumcampo fortificado de guerreiros antigos. O luar cairia por látão calmamente a essa hora, e ela imaginava a rude esteira deprata riscando a velha pele enrugada do mar.

– E aqui estamos nós – disse, em voz alta, meio satiricamente, mas com evidente orgulho – a falar de arte.

Puxou uma cesta com novelos de lã e diversas cores e um par de meias que precisava cerzir, e pôs os dedos em movimento, mas a mente, refletindo a lassidão do corpo, continuou, obstinada, a conjurar visões de solidão e quietude. Epôs de lado o tricô e caminhou pela colina, a ouvir nadamais nada menos que os carneiros que cortavam a relva bemrente às raízes, enquanto que as sombras das arvorezinhasbaixas moviam-se de leve, para cá, para lá, ao luar, quando abrisa as tocava. Mas estava perfeitamente cônscia da suapresente situação, e tirava até algum prazer da reflexão deque era capaz de se alegrar tão bem na solidão quanto napresença das muitas pessoas que, a essa hora, convergiampor variados caminhos, através de Londres, para o exato lugar onde se achava sentada.

Enquanto enfiava a agulha na lã e tirava-a outra vez,pensava nas várias fases da sua vida que faziam dessa atualposição como que o resultado de sucessivos milagres.Pensouno pai clérigo, no seu presbitério da roça, na morte de sua mãe, na sua própria determinação de educar-se, e na suavida de colégio, que se misturara, não havia muito, no maravilhoso labirinto de Londres, que ainda lhe parecia, a despeito da sua sensatez congênita, um imenso farol irradiando luz para miríades de homens e mulheres amontoados em volta. E aqui estava ela, Mary, no centro de tudo, esse centroque ocupava sem cessar as mentes de pessoas nas remotasflorestas do Canadá ou nas planuras da Índia, quando seuspensamentos se voltavam para a Inglaterra. As nove batidasmusicais, pelas quais ficou sabendo a hora, eram uma mensagem do grande relógio de Westminster. Quando a últimase dissolveu no ar, houve uma firme pancada na sua própriaporta, levantou-se e abriu. Quando voltou à sala, tinha nosolhos uma expressão de decidido prazer e falava com RalphDenham, que a seguia.

– Só? – perguntou ele, como se estivesse agradavelmentesurpreso com o fato.

– Fico só, às vezes – respondeu ela.

– Mas espera muita gente – continuou ele, olhando em volta. – É como um salão num palco. Que vai ser, esta noite?

– William Rodney, sobre o uso elisabetano da metáfora.Espero um trabalho bom, consistente, repleto de citaçõesdos clássicos. Ralph aqueceu as mãos ao fogo, que flamejava, intrépido,na lareira, enquanto Mary retomava sua meia.

– Acho que você é a única mulher em Londres que cirze as próprias meias – disse.

– Na verdade, sou apenas uma dentre muitos milhares respondeu ela –, embora deva admitir que estava a me julgarbastante notável quando você chegou. Agora que está aqui, não me acho mais notável. Que malvadeza a sua! Mas tenho de reconhecer que você é muito mais notável do que eu.Já fez muito mais do que eu fiz.

– Se esse é o seu cânon para medir as coisas, então não tem nada de que se orgulhar a meu respeito – disse Ralphcom ar sombrio.

– Bem, tenho de observar, com Emerson, que é ser e não fazer o que importa – continuou ela.

– Emerson? – exclamou Ralph com derrisão. – Você não me vai dizer que lê Emerson?

– Talvez não tenha sido Emerson. Mas por que razão não deveria eu ler Emerson? – perguntou ela com um grão de ansiedade.

– Nenhuma razão que seja do meu conhecimento.Apenas,a combinação é insólita: livros e meias. A combinação é deveras insólita. Mas parecia, ao contrário, impressioná-lo. Mary soltouuma pequena risada, sinal de felicidade, e os pontos que davaagora no trabalho pareciam-lhe de singular competência egraça. Pegou da meia e examinou-a de perto, com aprovação.

– Você sempre diz isso. Pois asseguro-lhe que a ‘combinação’, como diz você, é comum nas casas do clero. A única coisa insólita comigo é que eu gosto de ambos: de Emerson e da meia.

Ouviu-se uma batida e Ralph exclamou:

– Para o diabo com essa gente! Quisera que não viessem!

– É apenas Mr.