Rodney, entrementes, fa-lava dos dramaturgos elisabetanos .
Era um homem de aspecto curioso. À primeira vista, e especialmente se estivesse falando com animação, parecia,de certo modo, ridículo; já no momento seguinte, em repouso, seu rosto, com o nariz avantajado, as bochechas ma-gras, os lábios expressivos, cheios de sensibilidade, fazialembrar, de algum modo, uma cabeça romana coroada delouros, esculpida em relevo num círculo de alguma pedraavermelhada e translúcida. Tinha dignidade e caráter. Funcionário, por profissão, num escritório qualquer do governo, era um desses espíritos sacrificados para os quais aliteratura constitui, ao mesmo tempo, uma fonte de divinasalegrias e de quase intolerável irritação. Não contentes emdescansar no seu amor por ela, são impelidos a praticá-la,embora pouco dotados em matéria de composição.Condenam, assim, tudo o que produzem. Ademais, é tal aviolência dos seus sentimentos que raras vezes encontram asimpatia adequada; e por se terem tomado extremamentesensíveis devido a sua percepção apurada, julgam-se vítimasde constantes desfeitas, tanto a sua pessoa quanto à coisaque veneram. Mas Rodney tinha sempre de pôr à prova assimpatias de qualquer um que lhe parecesse favoravelmentedisposto, e o elogio de Denham lhe estimulara a vaidade àflor da pele.
– Lembra-se do trecho imediatamente anterior à morte da duquesa? – continuou, chegando-se mais para perto de Denham e ajustando seu cotovelo e joelho numa incrívelcombinação angular. Katharine, cortada, por essas mano-bras, de toda comunicação com o mundo exterior, pôs-se de pé e sentou-se no peitoril da janela, onde Mary Datchet sereuniu a ela. As duas mulheres tinham, assim, uma vista geral da sala. Denham olhou na direção delas e fez um movimento convulsivo, como se arrancasse pela raiz mancheiasde grama – do tapete. Mas como isso se ajustava perfeitamente à sua concepção da vida,a de que todos os desejos são fadados à frustração, concentrou-se na literatura e decidiu, filosoficamente, tirar disso o proveito que pudesse.
Katharine estava agradavelmente excitada. Dispunha de uma variedade de caminhos à sua frente. Conhecia ligeiramente muita daquela gente e a qualquer momento umapessoa poderia levantar-se e vir falar com ela.Por outro lado,poderia escolher ela mesma alguém ou entrar na conversade Rodney, a quem dava intermitente atenção. Estava consciente também do corpo de Mary a seu lado, mas, ao mesmo tempo, o fato de serem ambas mulheres fazia desnecessário falar-lhe. Mas Mary, achando, como dissera queKatharine era uma “personalidade”, queria tanto falar comela que logo o fez.
– São exatamentecomo um rebanho de carneiros,não é? – disse, referindo-se ao burburinho dos corpos espalhados a seus pés.Katharine virou-se para ela e sorriu.
– Não sei por que estão a fazer tal barulho – disse.
– Por causa dos elisabetanos, imagino.
– Não, não creio que tenha qualquer coisa a ver com os elisabetanos. Ouviu? Não disseram “Lei de Seguros”?
– Não sei por que os homens estão sempre a falar de política – disse Mary. – Suponho que, se pudéssemos votar,também falaríamos.
– É muito provável que sim. E você passa a vida a tentarconseguir o direito do voto para nós, não é?
– É – respondeu Mary, bravamente. – De dez às seis, todos os dias, luto por isso.Katharine olhou para Ralph Denham, que em companhia de Rodney abria caminho penosamente através dametafísica da metáfora. E lembrou-se da conversa naquelatarde de domingo. Havia qualquer vaga ligação com Mary.
– Imagino que você seja dessas pessoas que pensam que todos devem ter uma profissão – disse, sem muito interesse,e como se apalpasse caminho entre os fantasmas de ummundo desconhecido.
– Oh, não, nada disso – disse Mary imediatamente.
– Bem, eu sou dessas – continuou Katharine com um meio suspiro. – A gente pode sempre dizer que fez algumacoisa, enquanto que, numa multidão como esta, sinto-me um tanto melancólica.
– Numa multidão? Por que numa multidão? – perguntouMary, com as duas linhas verticais a se lhe aprofundarem nocenho, e achegando-se a Katharine, no peitoril da janela.
– Pois não vê por quantas coisas diferentes se interessaessa massa de gente? E eu quero ser melhor que eles, querdizer – corrigiu-se –, quero afirmar-me, e é difícil quandonão se tem uma profissão.
Mary sorriu, pensando que ser melhor que os outros eracoisa que não deveria apresentar a menor dificuldade paraMiss Katharine Hilbery. Conheciam-se tão ligeiramenteque esse começo de intimidade, de que Katharine pareciatomar a iniciativa ao falar de si mesma, guardava algo desolene. E ficaram caladas, as duas, como que a decidir se era o caso de ir ou não adiante. Experimentavam o solo em quepisavam.
– Ah, mas eu quero espezinhar os corpos deles, prostrados no chão! – anunciou Katharine, um momento depois,com uma risada, como se achasse graça do encadeamentode pensamentos que a levara a essa conclusão.
– A gente não passa necessariamente por cima dos outros quando dirige um escritório – disse Mary.
– Não. Pode ser que não – respondeu Katharine.
A conversação descambou, e Mary viu que Katharine contemplava a sala com ar macambúzio, os lábios apertados. O desejo de falar sobre si mesma ou de iniciar uma amizade tinham-na aparentemente deixado. Mary ficou impressionada com a capacidade da outra de ficar assim,e, tão sem esforço, sem dizer palavra, ocupar-se com seus próprios pensamentos. Era um hábito que revelava solidão e uma mente acostumada a pensar por si. E, quando Katharine persistiu no silêncio, Mary ficou um pouco desconcertada.
– É, são absolutamente como carneiros – repetiu idiotamente.
– E, no entanto, pelo menos são muito inteligentes acrescentou Katharine.
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