Fortescue.

Denham levantou-se, meio inclinado a ir-se, e pensandoque já vira tudo o que havia para ver, mas Katharine levantou-se no mesmo momento, dizendo:

– Talvez queira ver os quadros. – E mostrou o caminho,atravessando o salão e passando a uma peça menor contígua.

Essa peça menor era como uma capela numa catedral ouuma grota numa caverna, pois que o surdo rumor do tráfegoa distância sugeria o macio murmúrio de águas, e os espelhos ovais, com sua superfície de prata, semelhavam pequenos tanques profundos tremeluzindo à luz de estrelas. Masa comparação com um templo era a mais apropriada dasduas porque o pequeno salão estava cheio de relíquias.

Quando Katharine tocou em vários pontos, pequenasluzes surgiram aqui e ali, revelando uma massa quadrada delivros vermelhos e dourados, e depois uma longa saia azul ebranca, lustrosa, atrás de um vidro, e depois uma secretáriade mógono, com seu bem ordenado equipamento e, finalmente, uma pintura quadrada, acima da mesa, para a qualse providenciara iluminação especial. Quando Katharinetocou essas últimas luzes, recuou de um passo, como quepara dizer: “Veja!” E Denham se viu contemplado pelosolhos do grande poeta, Richard Alardyce, e levou um pequeno choque, que o teria feito tirar o chapéu se portasseum chapéu na sua cabeça. Os olhos o olhavam em meio aossuaves rosados e amarelos do quadro com uma afabilidadedivina que parecia incluí-lo, mas que passava além paracontemplar o mundo inteiro. As tintas haviam desbotado atal ponto que pouco restava além dos belos olhos, escuroscontra o fundo impreciso.

Katharine esperou, como que para deixá-lo receber todo o impacto, e depois disse:

– Esta é a escrivaninha dele. Ele usou esta pena – e tomouda uma pena de ganso que depois deixou cair de novo. A escrivaninha estava coberta de velhos borrões de tinta, e a penase arrepiara com o uso. Havia também, à mão, os enormesóculos de aro de ouro e, debaixo da mesa, um par de grandeschinelos velhos, um dos quais Katharine pegou, dizendo:

– Penso que meu avô deve ter tido pelo menos o dobro do tamanho dos homens de hoje. Isto – continuou, como sesoubesse de cor o que ia dizer –, isto é o manuscrito originalda Ode ao Inverno. Os primeiros poemas são muito menosemendados que os últimos. Gostaria de examiná-lo?

Enquanto Mr. Denham examinava o manuscrito, ela contemplava o avô e, pela milésima vez, caía num agradável estado de sonho em que parecia ser a companheira desses homens gigantescos, ou pelo menos pertencer à sua linhagem; e o presente momento, insignificante, ficava superado. Certamente, aquela magnífica e fantasmagórica cabeça na tela jamais passou pelas trivialidades de uma tarde de domingo, e não parecia que tivesse importância qualquer coisa que ela e esse jovem se dissessem,pois que eram gente de somenos.

– Este é um exemplar da primeira edição dos poemas continuou Katharine, sem levar em conta que Mr. Denhamestava ainda às voltas com o manuscrito. – Contém vários poemas que não foram reeditados, assim como correções.Fez uma curta pausa e prosseguiu, como se os intervalostivessem sido todos calculados:

– Essa senhora de azul é minha bisavó, por Millington. Eaqui está a bengala de meu tio.Como sabe,ele era Sir Richard Warbuton,e cavalgou com Havelock para socorrer Lucknow.E agora, deixe-me ver, oh, esse é o Alardyce originário, 1697, o fundador da fortuna da família,com a mulher.Alguém nosdeu essa terrina um dia desses, porque tinha o brasão dele eas suas iniciais. Pensamos que devem tê-la ganhado de presente, para celebrar suas bodas de prata.

Nesse ponto ela se deteve por um momento, a imaginarpor que Mr. Denham não dizia nada. Sua impressão de queele lhe era hostil, que se evaporara quando passou a pensarnos objetos da família, voltou, e tão agudamente que elaparou em meio a seu inventário e olhou para ele. Sua mãe,querendo associá-lo honrosamente aos grandes mortos, comparara-o a Mr. Ruskin; e a comparação ficara na mentede Katharine, e levava-a a ser menos indulgente com ele doque seria justo, uma vez que um rapaz que faz uma visita defraque está num elemento inteiramente diverso do que umacabeça capturada no clímax da expressão e que olha imutavelmente por detrás de uma lâmina de vidro – pois que issoera tudo o que restava para ela de Mr. Ruskin. Mr. Denhamtinha um rosto singular, um rosto construído mais para avelocidade e a decisão do que para a contemplação maciça;a fronte ampla, o nariz comprido e formidável, os lábiosraspados e visivelmente teimosos e sensíveis, as faces ma-gras, com uma forte corrente de sangue vermelho a correrpor elas, mas nas profundezas. Seus olhos, em que haviaagora a costumeira expressão masculina, impessoal e autoritária, poderiam revelar emoções mais sutis em circunstâncias propícias. Eram grandes, de cor castanho-clara. Pareciam, de repente, hesitar e especular. Mas Katharineolhava-o apenas para descobrir se o seu rosto não ficariamais próximo do padrão dos heróis mortos se fosse adornado de suíças. No seu porte parcimonioso e nas maçãs ossudas, mas sadias, via sinais de uma alma acerba, cheia de arestas. A voz notou – tinha uma nota vibrante (ou rachada?),quando depôs o manuscrito na mesa e disse:

– A senhora deve ter muito orgulho de sua família, MissHilbery.

– Sim, tenho – respondeu Katharine.