Detesto grandes homens. O culto da grandeza no século XIX me parece explicar a desvalia dessa geração.
Katharine entreabriu os lábios e prendeu o fôlego, comose fosse responder com o mesmo vigor. Contudo, uma portaque se fechou na peça ao lado desviou-lhe a atenção,e ambosficaram conscientes de que as vozes, que se vinham alteandoe caindo em torno da mesa de chá, se haviam calado. A própria luz parecia haver baixado. Um momento depois, Mrs.Hilbery apareceu na soleira da ante-sala. Ficou a olhá-loscom um ar de expectativa estampado no rosto como se umacena de algum drama da nova geração estivesse a ser levadapara seu deleite. Era uma mulher de aparência extraordinária, já avançada nos sessenta, mas, graças à leveza de sua ossatura e ao brilho dos olhos, parecia haver flutuado à superfície dos anos sem sofrer, à sua passagem, muitos estragos.Seu rosto era fundo e aquilino, mas qualquer impressão de dureza desmanchavam-na os olhos, ao mesmo tempo sagazes e inocentes, que pareciam ver o mundo com um enormedesejo de que ele se comportasse nobremente e com inteiraconfiança em que o faria, caso se desse a esse trabalho.
Certas linhas em sua ampla fronte e em volta dos lábios podiam, talvez, sugerir que ela conhecera momentos de alguma dificuldade e perplexidade no curso de sua carreira, masisso não lhe destruira a fé, e ela ainda se achava, visivelmente, preparada para dar a qualquer um todas as oportunidades possíveis e ao sistema, na incerteza quanto a sua maldade intrínseca, um julgamento favorável. Aparentava grande semelhança com o pai,e de algum modo sugeria,tal como ele,o frescordo ar e os amplos espaços de um mundo mais jovem.
– Bem – disse ela –, que achou de nossas coisas, Mr. Denham? Mr. Denham levantou-se, abriu a boca, mas não disse nada, coisa que Katharine notou, divertida.
Mrs. Hilbery folheou o livro que ele pusera na mesa.
– Há livros que vivem – observou, como se refletisse. – São jovens quando somos jovens e envelhecem conosco. Osenhor gosta de poesia, Mr. Denham? Mas que perguntaabsurda! A verdade é que o caro Mr. Fortescue deixou-meexausta. Ele é tão eloqüente e tão espirituoso e tão profundoque, depois de uma hora ou coisa assim, sinto-me tentada aapagar a luz. Mas talvez ele seja mais maravilhoso do quenunca no escuro. Que acha você, Katharine? Vamos dar uma festa na mais completa escuridão? Haverá salas bemiluminadas para os cacetes...
A essa altura Mr. Denham despediu-se.
– Mas temos ainda uma infinidade de coisas para mostrar-lhe! – exclamou Mrs. Hilbery, não tomando conhecimento do gesto. – Livros, quadros, porcelana, manuscritos, e a cadeira mesma em que Mary Rainha da Escóciaestava sentada quando soube do assassinato de Damley.Devo repousar um pouquinho, e Katharine deve mudar ovestido (embora o que esteja usando seja muito bonito também), mas se o senhor não se importa de ficar só, o jantarserá servido às oito. Ouso dizer que escreverá um poema desua lavra. Ah, como adoro o lume de uma lareira! Nosso salão não lhe parece encantador?
Ela deu um passo atrás como se os convidasse a contemplar o salão vazio, com suas lâmpadas ricas e irregulares,enquanto as chamas da lareira saltavam e tremulavam.
– Queridas coisas! – exclamou ela. – Queridas cadeiras e mesas! Como se parecem a velhas amigas, fiéis, caladas amigas. O que me faz lembrar, Katharine, que o pequeno Mr.Anning deve vir esta noite,e Tite Street e Cadogan Square...“ Lembre-me para mandar pôr vidro naquele desenho de seu avô. A Tia Millicent fez uma observação a respeito, daúltima vez em que esteve aqui, e sei o quanto me doeria, amim, ver meu pai atrás de um vidro partido.
Dizer adeus e escapar foi como abrir caminho, a custo,por entre um labirinto de teias de aranha cintilantes comogemas, pois a cada movimento Mrs. Hilbery se lembrava dealguma outra coisa sobre as vilanias dos envidraçadores ousobre os deleites da poesia, e em certo momento pareceu aorapaz que acabaria hipnotizado e obrigado a fazer o que elapretendia desejar que fizesse, pois não podia imaginar que desse verdadeiramente importância à sua presença.Katharine, todavia, deu-lhe uma oportunidade de sair, e porisso ficou-lhe grato, como uma pessoa é grata pela compreensão de outra.
2
O rapaz fechou a porta com uma violência maior do que a usada por qualquer das visitas naquela tarde, e saiu pelarua a largas passadas, cortando o ar com a sua bengala.Estava alegre por sentir-se fora daquele salão, respirando oúmido nevoeiro e em contato com gente inculta que nadamais queria que a parte do passeio a que tinham direito.Ocorreu-lhe que, se tivesse Mr. ou Mrs. Hilbery ali fora,faria de algum modo que sentissem a sua superioridade,pois pesava-lhe a memória de sentenças hesitantes, desastradas que não tinham dado nem mesmo à moça de olhostristes, mas interiormente irônicos, uma noção da sua força. Tentou recordar as palavras exatas da sua pequena explosão,mas suplementou-as inconscientemente de tantas palavrasde maior expressividade que a irritação do fracasso ficou, atécerto ponto, aliviada.
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