Súbitas pontadas da impiedosa verdade assaltavam-no de vez em quando, porque não era de natureza a ter uma visão cor-de-rosa da sua própria conduta,mas com o som dos seus passos na calçada e os vislumbresque as cortinas entreabertas lhe davam de cozinhas, salasde-visita e de jantar, ilustrando com mudo vigor diferentescenas de diferentes vidas, sua própria experiência foi perdendo as arestas agudas. E passou por uma alteração curiosa. Sua velocidade diminuiu, sua cabeça pendeu um poucopara o peito, e a luz dos postes passou a brilhar outra vez, deespaço em espaço, num rosto de novo estranhamente pacificado. Seus pensamentos eram tão absorventes que quandolhe foi necessário verificar o nome de uma rua, teve de olhar a placa por algum tempo antes que conseguisse ler qualquercoisa; chegando a um cruzamento, pareceu sentir necessidade de se restituir a confiança com duas ou três pancadas nomeio fio, dessas que os cegos dão. E, ao atingir a estação dometrô, piscou no círculo claro das luzes, olhando o relógio e decidindo que se permitiria um pouco mais de escuridão – efoi em frente.

No entanto, o pensamento que o ocupava era o mesmo com que começara. Pensava ainda nas pessoas da casa queacabava de deixar; mas, ao invés de reconstituir, com a exatidão possível, a aparência delas e o que tinham dito, abandonara conscientemente a verdade literal. Uma esquina, umquarto aceso, algo de monumental no préstito dos postes,quem poderá dizer que acidente de luz ou de forma mudou,subitamente, seu trem de pensamento e o fez murmurar emvoz alta:

– Ela serve... Sim, Katharine Hilbery serve muito bem...Fico com Katharine Hilbery.

Mal disse isso, seu passo perdeu a força, sua cabeça tombou, seus olhos ficaram fixos. O desejo de justificar-se, que,havia pouco, fora tão imperioso, deixou de atormentá-lo e,como que libertadas de uma opressão, como se funcionassem agora sem fricção ou comando, suas faculdades deramum salto à frente e se fixaram,com a maior naturalidade,na forma de Katharine Hilbery. Era maravilhoso o ter encontrado nela tanta coisa para alimentá-las, considerando-se anatureza destrutiva da sua crítica quando em presença dela.O encanto, que ele tentara negar, quando sob o efeito dele,a beleza, o caráter, o alheamento a que desejara ser insensível, agora o possuíam de todo; e quando, como acontecepela própria natureza das coisas, esgotou suas lembranças,prosseguiu nas asas da imaginação. Estava consciente do que fazia, pois que, demorando assim nos atributos de MissHilbery, mostrava uma espécie de método, como se precisasse dessa visão dela para um fim determinado. Aumentoua altura dela,escureceu-lhe os cabelos;mas,fisicamente,não havia tanto a mudar. Sua mais audaciosa licença tomou-a com a mente da moça, a qual, por motivos lá dele, quis quefora exaltada e infalível e de tamanha independência que sóno caso de Ralph Denham desviava-se do seu vôo alto eveloz; mas naquilo que lhe dizia respeito, a ele, Denham,embora fastidiosa de começo, ela descia, por fim, da eminência em que pairava para coroá-la com sua aprovação.Esses deliciosos detalhes, todavia, tinham de ser ainda elaborados em todas as suas ramificações, a seu bel-prazer. Oponto essencial era que Katharine Hilbery servia. Serviriapor semanas a fio, talvez meses. Ficando com ela, ele se oferecia algo cuja falta o deixara, por muito tempo, com um vazio no espírito. Deu um suspiro de satisfação; voltou-lhea consciência de achar-se, no momento, em algum lugar dasvizinhanças de Knightsbridge, e logo estava a caminho, de trem, rumo a Highgate.

Embora assim sustentado pela sua certeza de possuir doravante um bem de considerável valor não estava de todo imune aos pensamentos familiares que lhe sugeriam as ruas suburbanas e os arbustos molhados dos jardinzinhos diante das casas,e nos portões os nomes absurdos pintados à tinta branca.

Sua rua era uma ladeira; enquanto subia pensava na casaem que ia entrar e onde encontraria seis ou sete irmãos eirmãs, a mãe viúva e, provavelmente, alguma tia ou algum tio, sentados, a comer uma desagradável refeição sob umalâmpada excessivamente brilhante. Deveria acaso executar aameaça que, duas semanas antes, uma reunião desse tipo lhearrancara – a terrível ameaça de jantar sozinho no quarto aos domingos se houvesse visitas? Um olhar na direção de Miss Hilbery decidira-o a assumir uma atitude nessa noitemesmo. Assim, depois de entrar, e de verificar a presença deTio Joseph por um chapéu coco e um enorme guarda-chuva, deu ordens à empregada e subiu para o quarto.

Subiu muitíssimos lances de escada e observou, coisa que muito poucas vezes lhe acontecera antes, como a passadeira ia ficando a cada lanço mais coçada, até que acabavade todo. E como as paredes haviam ficado desbotadas, àsvezes por cascatas de mofo,às vezes pelas marcas de quadroshá muito retirados, como o papel balançava, solto, nos cantos, e como um grande fragmento de estuque caíra do teto.Seu próprio quarto era um lugar melancólico para onde voltar a essa hora ingrata. Um sofá achatado faria as vezes de cama, mais tarde, quando a noite fosse avançada; uma dasmesas escondia a aparelhagem de toalete; suas roupas e sapatos misturavam-se desagradavelmente com livros, quetraziam brasões dourados de colégios; e, como decoração,havia, dependuradas nas paredes, fotografias de pontes e catedrais, além de grandes (e pouco sedutores) grupos de rapazes sumariamente vestidos, sentados em filas umas acimadas outras em degraus de pedra. Um ar de pobreza e mesquinhez exalava-se da mobília, das cortinas. E em lugar al-gum o menor sinal de luxo, ou mesmo de bom gosto, a nãoser que os clássicos, em edições baratas, fossem, nas estantes,sinal de um esforço nesse sentido. O único objeto que lançava alguma luz sobre o caráter do dono do quarto era um grande poleiro, posto junto à janela para apanhar ar e sol, eno qual uma gralha, domesticada e aparentemente decrépita, saltitava, ressequida, de um lado para outro. O pássaro,encorajadopor uma frestinha atrás da orelha,instalou-seno ombro de Denham. Ele acendeu seu fogo a gás e sentou-se,com sombria paciência, para esperar o jantar. Depois de estar assim por alguns minutos, uma menina enfiou a cabeçana porta para dizer:

– A mãe pergunta se você não vai descer, Ralph? Tio Joseph...

– Vão trazer meu jantar – disse Ralph, peremptório.

Sem mais ela desapareceu, deixando a porta escancaradana pressa de ir embora. Depois que Denham esperou maisalguns minutos, no curso dos quais nem ele nem a gralhatiraram os olhos do fogo,soltou uma praga entre dentes,desceu correndo as escadas, interceptou a empregada, e serviuse de uma fatia de pão e outra de carne fria. Fazia isso quando a porta da sala-de-jantar se abriu e uma voz gritou:“Ralph!”, mas Ralph não lhe deu atenção, fugindo escadaacima com seu prato. Depositou-o numa cadeira em frente à sua, e começou com uma fúria que era fruto em parte daraiva, em parte da fome.