Sua mãe, então, estava decidida anão respeitar seus desejos; ele era pessoa de nenhuma importância para a própria família; dispunha dele, tratavam-no como criança. Com crescente sentimento de quem é lesado,ficou a refletir que quase todos os seus atos, desde a aberturada porta do quarto, haviam sido arrancados às garras do sistema familiar. De direito, devia estar sentado embaixo, na sala de estar, contando suas aventuras da tarde ou ouvindo as aventuras da tarde de outras pessoas; o próprio quarto,o fogo a gás, a poltrona – tudo – tiveram de ser conquistados com luta; o miserável pássaro, aleijado de uma perna e com metade das penas arrancadas por um gato, fora salvo sob protesto,mas o que mais ofendia a família era seu desejo de privacidade. Comer sozinho, ou ficar sentado sozinho depois do jantar, significava rebelião aberta, que cumpria enfrentar comtoda espécie de arma, de dissimulação sorrateira ou de apeloaberto e franco. O que detestaria mais: o embuste ou as lágrimas? Mas, afinal de contas, não lhe podiam roubar ospensamentos; não podiam fazê-lo contar onde estivera ouquem vira. Isso era da sua própria conta; isso, na verdade, eraum passo inteiramente na direção certa e, acendendo o cachimbo, e picando o resto da comida para a gralha, Ralphacalmou sua exagerada irritação, instalando-se na cadeirapara refletir sobre suas chances.

Essa tarde específica constituíra um passo na boa direção,porque era parte do seu plano conhecer gente fora do círculo familiar, assim como era parte do seu plano estudar alemãonesse outono,e fazer a crítica de livros de direito para a Critical Review de Mr.Hilbery.Fazia planos desde menino,a pobreza, o fato de ser o filho mais velho de uma família numerosa, haviam-lhe dado o hábito de pensar na primavera e no verão,no outono e no inverno como outras tantas etapas de umaprolongada campanha. Embora ainda não tivesse trinta anos,esse hábito de tudo calcular de antemão marcara duas linhas semicirculares acima das suas sobrancelhas, que ameaçavam,agora mesmo, afundar ainda mais suas formas conhecidas.Mas, em vez de instalar-se e pensar, levantou-se, tomou deum pedaço de papelão em que escrevera com letras grandes apalavra FORA e pendurou-o na maçaneta da porta. Feitoisso, afiou um lápis, acendeu uma lâmpada de mesa e abriu o livro. Mas hesitava ainda em assumir o lugar. Coçou a gralha,foi até a janela, abriu as cortinas e olhou a cidade que jaziabrilhante abaixo dele. Olhou, através do nevoeiro, na direção de Chelsea. Olhou fixamente por um momento, depois voltou à cadeira. Mas o peso de um grosso tratado de algum sábio jurista sobre agravos não lhe pareceu satisfatório. Atravésdas páginas, viu um salão espaçoso e vazio; ouviu vozes emsurdina, viu a figura de mulheres, podia até sentir o perfumeda acha de cedro que ardia na lareira. Sua mente relaxou e pareceu pronta a soltar tudo aquilo que inconscientementearmazenara. Podia recordar exatamente as palavras de Mr.Fortescue e a ênfase retumbante com que as emitia. Pôs-se arepetir o que Mr. Fortescue dissera, à maneira do próprio Mr.Fortescue,sobre Manchester.Sua mente começou então a vaguear pela casa,e ele se perguntou se não haveria outras peçascomo o salão, e pensou, com irrelevância, em como devia ser bonito o banheiro, e quão agradável e descuidosa era a vidadessa gente, que, sem dúvida nenhuma, estaria ainda sentadanas mesmas cadeiras – teriam apenas mudado de roupa – e o pequeno Mr.Anning estaria lá,e a tia que ficaria chocada com o vidro quebrado do retrato do pai.Miss Hilbery teria trocado o vestido (“embora fosse tão bonito o que estivera usando”,ouviu a mãe dizer). E falava com Mr. Anning que já passavados quarenta, e ainda por cima era calvo, sobre livros.

Como tudo era calmo, espaçoso. E essa paz o possuiu tãocompletamente que seus músculos relaxaram, o livro caiulhe das mãos, e esqueceu que a hora do trabalho escoava,perdida minuto a minuto.

Foi despertado por um estalido na escada.Com um sobressalto de culpa, aprumou-se, franziu a testa e olhou firme paraa página cinqüenta e seis do seu livro. Passos detiveram-se àporta,e ele percebeu que a pessoa,quem quer que fosse,estavaa considerar o aviso e a debater consigo mesma se honraria aordem ou não. Certamente a boa política mandava que elepermanecesse sentado, imóvel, em autocrático silêncio, porque não há costume que se enraíze numa família se cada ramonão é castigado severamente por causa dele nos primeiros seismeses, ou coisa assim. Ralph, porém, estava cônscio de umnítido desejo de ser interrompido, e seu desapontamento eraperceptível, quando ouviu de novo o estalido, mas agora maisabaixo, na escada, como se o visitante tivesse decidido retirarse. Levantou-se, então, abriu a porta com desnecessária aspereza, e postou-se no patamar, à espera. A pessoa parou simultaneamente, a meio do primeiro lanço.

– Ralph? – inquiriu uma voz.

– Joan?

– Eu estava subindo, mas vi o seu aviso.

– Bem, venha, então. – Ele escondeu o desejo com um tom tão ranzinza quanto pôde fazê-lo.

Joan entrou, mas teve o cuidado de deixar claro, ficando de pé, com uma das mãos apoiada no consolo da lareira, queestava ali com um propósito definido e que, uma vez satisfeito esse propósito, iria embora.

Era mais velha que Ralph uns três ou quatro anos.Tinha o rosto redondo, mas gasto, com a expressão de bom humoraflito que é atributo especial das irmãs mais velhas em famílias grandes. Seus simpáticos olhos castanhos pareciam comos de Ralph exceto na expressão, pois que, enquanto eleolhava de frente e intensamente um determinado objeto,elaparecia ter o hábito de considerar tudo segundo não poucosdiferentes pontos de vista. Isso a fazia parecer mais velhapor mais anos do que os que realmente existiam entre osdois. Seu olhar demorou-se por um momento ou dois nagralha.