Nosso trole chegara ao topo de uma elevação e diante de nós descortinou-se a imensa extensão da charneca, entremeada por montes de pedras irregulares e escarpados. Dela soprava um vento frio que nos fez estremecer. Em algum lugar ali, naquela planície desolada, emboscava-se esse homem demoníaco, escondido numa toca como um animal selvagem, o coração transbordando de maldade contra toda a raça que o renegara. Só faltava isso para completar a atmosfera assustadora do deserto estéril, o vento gélido e o céu escuro. Até Baskerville calou-se e se aconchegou mais em seu sobretudo.
Havíamos deixado os campos férteis atrás e abaixo de nós. Voltávamos os olhos para eles agora, os raios oblíquos de um sol baixo transformando os regatos em fios de ouro e fulgurando sobre a terra vermelha agora revirada pelo arado e o vasto emaranhado das florestas. A estrada diante de nós ficava mais deserta e agreste por sobre enormes encostas castanho-avermelhadas e oliváceas, salpicadas por penedos gigantescos. Vez por outra passávamos por uma cabana, com paredes e telhado de pedra, sem nenhuma trepadeira para quebrar seu perfil severo. De repente demos com uma depressão em forma de xícara, com carvalhos e abetos mirrados e retorcidos pela fúria de anos de tempestade. Duas torres altas e estreitas se elevavam acima das árvores. O cocheiro apontou com seu chicote.
“O Solar Baskerville.”

“O cocheiro apontou com seu chicote: ‘O Solar Baskerville’.”
[Sidney Paget, Strand Magazine, 1901]
Seu patrão, agora de pé, contemplava, as faces ruborizadas e os olhos brilhando. Alguns minutos depois tínhamos chegado aos portões, um intricado arabesco em ferro forjado, com pilares corroídos pelo tempo de ambos os lados, cobertos de líquens e coroados pelas cabeças de javali dos Baskerville. A casa do porteiro era uma ruína de granito preto, os caibros expostos, mas diante dela havia um prédio em construção, o primeiro fruto do ouro sul-africano de Sir Charles.
Cruzando o portão entramos na alameda, onde as rodas viram-se novamente silenciadas pelas folhas, com as velhas árvores lançando seus galhos num túnel sombrio sobre nossas cabeças. Baskerville estremeceu quando seus olhos percorreram o longo e escuro caminho até a extremidade oposta, onde a casa bruxuleava como um fantasma.
“Foi aqui?” perguntou em voz baixa.
“Não, não, a Aleia de Teixos fica do outro lado.”
O jovem herdeiro olhou em volta com uma expressão desalentada.
“Não admira meu tio achar que fosse sofrer atribulações num lugar como este”, disse. “É suficiente para amedrontar qualquer um. Vou mandar instalar uma fileira de lâmpadas elétricas aqui dentro de seis meses, e os senhores não reconhecerão o lugar com uma Swan e Edison de mil velas bem aqui em frente à porta do solar.”
A alameda se abria num amplo gramado, e a casa se erguia diante de nós. À luz declinante, pude ver que o centro era um pesado bloco de construção do qual um pórtico se projetava. Toda a frente era forrada de hera, com um trecho aparado aqui e ali onde uma janela ou um brasão irrompia através do véu escuro. Desse bloco central elevavam-se as torres gêmeas, antigas, crenuladas, e perfuradas por muitas seteiras. À direita e à esquerda das torrinhas estendiam-se alas mais modernas de granito preto. Uma luz fosca brilhava através de janelas com mainéis pesados, e das altas chaminés que se elevavam do telhado escarpado, em ângulo alto, subia uma única coluna de fumaça preta.
“Bem-vindo, Sir Henry! Bem-vindo ao Solar Baskerville!”
Um homem alto saltou da sombra do pórtico para abrir a porta do trole. A figura de uma mulher delineava-se contra a luz amarela do salão. Ela saiu e ajudou o homem a descer nossas malas.
“Não se importa que eu siga direto para casa, Sir Henry?” perguntou o dr. Mortimer. “Minha mulher está me esperando.”
“Não poderia ficar e jantar conosco?”
“Não, preciso ir. Provavelmente encontrarei algum trabalho à minha espera. Gostaria de lhe mostrar a casa, mas Barrymore será um guia melhor que eu. Adeus, e não hesite em mandar me chamar, dia ou noite, se eu puder lhe ser útil.”
O barulho das rodas desapareceu no caminho enquanto Sir Henry e eu entrávamos no salão e a porta se fechava pesadamente atrás de nós. Vimo-nos num belo aposento, grande, alto, com enormes caibros de carvalho enegrecidos pelo tempo. Na grande e antiquada lareira atrás dos altos cães de ferro, um fogo de toras crepitava e estalava.
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