A lei tendencial sintetiza a manifestação direcionada, constante e regular

— não ocasional — da interação e oposição entre fatores imanentes na realidade fenomenal.

Como já observamos, o plano da estrutura de O Capital foi lon-gamente trabalhado e sofreu modificações, à medida que o autor ganhava maior domínio da matéria. O resultado é uma arquitetura im-ponente, cheia de sutilezas imperceptíveis à primeira vista, cujo estudo já instigou abordagens especializadas.

Sob a perspectiva de conjunto, há uma linha divisória entre os Livros Primeiro e Segundo, de um lado, e o Livro Terceiro, de outro.

Linha divisória que não diz respeito à separação entre questões mi-croeconômicas e macroeconômicas, pois nos três Livros encontramos umas e outras, conquanto se possa afirmar que o Livro Segundo é o mais voltado à macroeconomia. A distinção estrutural obedece a critério diferente. Os dois primeiros Livros são dedicados ao “capital em geral”, ao capital em sua identidade uniforme. O Livro Terceiro aborda a concorrência entre os capitais concretos, diferenciados pela função específica e pela modalidade de apropriação da mais-valia.

O “capital em geral” é, segundo Marx, a “quintessência do capital”, aquilo que identifica o capital enquanto capital em qualquer circunstância. No Livro Primeiro, trata-se do capital em sua relação direta de exploração da força de trabalho assalariada. Por isso mesmo, o locus preferencial é a fábrica e o tema principal é o processo de criação e acumulação da mais-valia. A modalidade exponencial do capital é o capital industrial, pois somente ele atua no processo de criação da mais-valia. No Livro Segundo, trata-se da circulação e da reprodução do capital social total. O capital é sempre plural, múltiplo, mas circula e se reproduz como se fosse um só capital social de acordo com exigências que se impõem em meio a inumeráveis flutuações e que dão ao movimento geral do capital uma forma cíclica.

No Livro Terceiro, os capitais se diferenciam, se individualizam, e o movimento global é enfocado sob o aspecto da concorrência entre 26

MARX

os capitais individuais. Por isso mesmo, é a esta altura que se aborda o tema da formação da taxa média ou geral do lucro e da transformação do valor em preço de produção. De acordo com as funções específicas que desempenham no circuito total da economia capitalista — na produção, na circulação e no crédito —, os capitais individuais apropriam-se de formas distintas de mais-valia: lucro industrial, lucro comercial, juros, cabendo à propriedade territorial a renda da terra, também ela uma forma particular da mais-valia. A lei dinâmica direcionadora desse embate concorrencial entre os capitais individuais pela apropriação da mais-valia é a lei da queda tendencial da taxa média de lucro.

A estrutura de O Capital, segundo Lange, foi montada de acordo com um plano que parte do nível mais alto de abstração, no qual se focalizam fatores isolados ou no menor número possível, daí procedendo por concretização progressiva, à medida que se acrescentam novos fatores, no sentido da aproximação cada vez maior e multilateral à realidade fatual. A esta interpretação, no geral correta, acrescentamos que o trânsito do abstrato ao concreto se faz em todo o percurso, a começar pelo Livro Primeiro. Já nele, encontramos o jogo dialético da passagem do abstrato ao concreto real e vice-versa.

Doravante, comentaremos alguns temas de O Capital, selecionados por sua significação sistêmica ou pela relevância das controvérsias que suscitaram.

IV. Mercadoria e Valor

De Smith e Ricardo recebeu Marx a teoria do valor-trabalho: a idéia de que o trabalho exigido pela produção das mercadorias mede o valor de troca entre elas e constitui o eixo em torno do qual oscilam os preços expressos em dinheiro. Ao explicitar que se tratava do tempo de trabalho incorporado às mercadorias, Ricardo clarificou a medida do valor de troca, embora se enredasse no insolúvel problema do padrão invariável do valor.

Uma vez que partiam do valor-trabalho, Smith e Ricardo superaram a concepção fisiocrática do excedente econômico em termos de produto físico. O excedente devia ser compreendido, antes de tudo, em termos de valor, ou seja, devia ser apreciado enquanto trabalho transferido ao produto. Mas a idéia de valor implica, por necessidade lógica, a troca de equivalentes: não se conceberia, de outra maneira, que o valor-trabalho pudesse ser o determinante da relação de troca entre mercadorias diferentes pelo valor de uso. A questão a solucionar consistia em tornar coerente a necessidade de troca de equivalentes com a apropriação do valor excedente pelo proprietário do capital.

Smith enfrentara a questão com a idéia de que o valor das mercadorias se media pela quantidade de trabalho que podiam comandar, sugerindo que havia uma diferença positiva entre o custo de cada mercadoria em termos de trabalho consumido e em termos de trabalho 27

OS ECONOMISTAS

que fosse capaz de comprar.