O valor de uso, por si só, não nos informa acerca das relações sociais subjacentes à relação individual do homem com a coisa. O sabor do trigo não muda pelo fato de ser produzido por um escravo, por um servo feudal ou por um 29
OS ECONOMISTAS
operário assalariado. Contudo, são improcedentes as críticas de que na obra marxiana se negligencia a significação do valor de uso enquanto categoria econômica.
Marx, aliás, teve oportunidade de contestar semelhante crítica nos comentários ao Tratado de Wagner. Comentários que poderia empregar, com idêntica pertinência, na refutação dos argumentos de Böhm-Bawerk, se ainda vivo estivesse quando vieram a público.
No concernente à mercadoria, o valor de uso é o suporte físico do valor. Não pode ter valor o que carece de valor de uso. Que a mercadoria possua o caráter dúplice de valor de uso e valor resulta do caráter também dúplice do próprio trabalho que a produz: trabalho concreto, que responde pelas qualidades físicas do objeto, e trabalho abstrato, enquanto gasto indiferenciado de energia humana. O trabalho abstrato, pelo fato de estabelecer uma relação de equivalência entre os variadíssimos trabalhos concretos, vem a ser a substância do valor.
Smith e Ricardo falaram de valor e valor de troca, sem estabelecer entre eles diferença categorial, preocupados sobretudo com o problema da medida do valor. O próprio Marx, em Para a Crítica da Economia
Política, não estabeleceu distinção terminológica entre valor e valor de troca. Mas, em O Capital, esta distinção foi firmada e salientada, pois se tornava clara a necessidade de focalizar no valor, em separado, a substância (trabalho abstrato cristalizado), a forma que se manifesta na relação entre mercadorias (valor de troca) e a grandeza (tempo de trabalho abstrato).
Vejamos, aqui, a questão da substância do valor.
O trabalho criador de valor é o trabalho socialmente necessário, executado segundo as condições médias vigentes da técnica, destreza do operário e intensidade do esforço na realização da tarefa produtiva.
O padrão é o do trabalho simples, ao qual o trabalho complexo (ou qualificado) é reduzido como certo múltiplo dele. Marx não analisou como se dá tal redução, porém indicou a linha geral dessa análise (a diferença de custo de formação da força de trabalho complexa em comparação com a força de trabalho simples) e tomou a redução como dada. Trata-se de um procedimento adotado pelo autor em certos casos: tomar em consideração apenas o resultado dado de um processo, apon-tando o caminho de sua análise, sem contudo desenvolvê-la, na medida em que fosse dispensável para fins prioritários da demonstração.
O problema da relação entre trabalho simples e complexo já merecera a atenção de Hodgskin, o qual, no entanto, não conseguiu definir o critério econômico intrínseco à relação. Com o tempo, tornou-se um dos cavalos de batalha às mãos dos adversários da teoria do valor-trabalho e, por isso mesmo, Böhm-Bawerk não haveria de omiti-lo. Mas, para efeito de argumentação, o líder da escola austríaca do marginalismo empregou exemplo tão fora de propósito como o da comparação entre o trabalho do escultor e o de um pedreiro. Ora, o produto do 30
MARX
trabalho artístico, marcado pela originalidade e unicidade, não pode ser comparado, enquanto mercadoria, com a produção mercantil repetida. A resposta de Hilferding a Böhm-Bawerk avançou um tanto na linha analítica apontada por Marx. Mas o argumento voltaria a ser esgrimido, em época recente, por Joan Robinson, com a indagação sobre a maneira de determinar a quantidade de trabalho abstrato contido na hora de trabalho de um engenheiro qualificado. Para a teoria do valor-trabalho, o que importa é que a hora de trabalho do engenheiro constitui um múltiplo (de cinco, dez ou quinze, não vem ao caso) da hora de trabalho do operário da construção civil, do operário soldador etc., enquanto média socialmente funcional.
O enfoque do valor pelo prisma de sua substância permitiu penetrar no universo histórico das relações sociais dentro do qual os produtos do trabalho humano se tornam valores. Para Smith e Ricardo, o valor não era uma qualidade social dos produtos, mas algo natural como o peso ou a consistência. Indiferente, portanto, às formas sociais.
Para Marx, o valor é, antes de tudo, uma substância social-histórica.
Nas organizações sociais em que a produção mercantil constitui atributo de proprietários privados, entre os quais já exista divisão social do trabalho bastante adiantada, somente de maneira indireta, pela troca mercantil, é que os produtos do trabalho privado se apresentam como produtos do trabalho social. O indicador do trabalho social é, precisamente, o valor, na condição de cristalização de trabalho abstrato, ao passo que o valor de troca, sendo a razão de intercâmbio entre as mercadorias, constitui a forma de manifestação do valor.
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