Os homens vivem, então, num mundo de mercadorias, um mundo de fetiches. Mas o fetichismo da mercadoria se prolonga e amplifica no fetichismo do capital.

O capital se encarna em coisas: instrumentos de produção criados pelo homem. Contudo, no processo de produção capitalista, não é o trabalhador que usa os instrumentos de produção. Ao contrário: os instrumentos de produção — convertidos em capital pela relação social da propriedade privada — é que usam o trabalhador. Dentro da fábrica, o trabalhador se torna um apêndice da máquina e se subordina aos movimentos dela, em obediência a uma finalidade — a do lucro — que lhe é alheia. O trabalho morto, acumulado no instrumento de produção, suga como um vampiro (a metáfora é de Marx) cada gota de sangue do trabalho vivo fornecido pela força de trabalho, também ela convertida em mercadoria, tão venal quanto qualquer outra.

Contudo, seria errôneo, como ficou em voga no segundo pós-guer-34

MARX

ra, fazer da alienação a categoria básica da teoria sócio-econômica marxiana. Com semelhante procedimento, efetua-se um retrocesso no concernente à evolução do próprio Marx, a qual, como foi visto, superou o conceito de alienação quando aceitou a tese do valor-trabalho. Na verdade, as teses essenciais da teoria sócio-econômica marxiana se apóiam nas categorias de valor e mais-valia, a partir das quais a categoria de alienação, recebida de Hegel e Feuerbach, se concretizou na crítica conseqüente ao fetichismo do capital.

A crítica ao fetichismo do capital vincula-se intimamente à decifração do segredo da acumulação originária do próprio capital. Como teria vindo ao mundo tão estranha entidade que conquistou a soberania sobre os homens e as coisas?

Sabemos de várias respostas. A de Nassau Senior: o capital nasceu da abstinência de uns poucos virtuosos, que preferiram poupar a consumir, assumindo o ônus de um sacrifício em benefício da sociedade justamente recompensado. A de Weber: o capitalismo requer a atitude racionalista diante dos fatos econômicos e semelhante atitude procedeu, na Europa ocidental, da ética protestante. A de Schumpeter: os primeiros empresários foram homens de talento que tiveram a poupança acumulada à sua disposição.

Já segundo Marx, o capital, não mais como capital mercantil, porém como capital industrial promotor do modo de produção capitalista, surge somente com determinado grau histórico de desenvolvimento das forças produtivas, grau este que implica determinado tipo de divisão social do trabalho. Só então é que o dinheiro e os meios de produção acumulados em poucas mãos podem ser valorizados mediante a exploração direta do trabalho assalariado. Fica, não obstante, a pergunta: como se acumularam o dinheiro e os meios de produção em poucas mãos?

Dessa história não se extrai uma lição sobre a recompensa das virtudes morais. Mercadores e usurários — representantes do capital mercantil pré-capitalista — concentraram a riqueza em dinheiro mediante toda espécie de fraude e de extorsão, características da atuação do capital nas formações sociais anteriores ao capitalismo. A aplicação do dinheiro acumulado na circulação mercantil e monetária à produção de mercadorias levou à exploração acentuada, à pauperização e à expropriação dos artesãos. Por sua vez, do próprio meio dos artesãos, emergiram os mestres que, em suas oficinas, se destacaram pela eficiência na exploração dos aprendizes e companheiros e puderam passar da condição de mestres-trabalhadores à de mestres capitalistas, já por inteiro patrões. Esta formação endógena do capital industrial constituiu, aliás, segundo Marx, o caminho efetivamente revolucionário de transformação capitalista da antiga economia feudal.

A acumulação originária do capital — conjunto de processos não-capitalistas que prepararam e aceleraram o advento de modo de pro-35

OS ECONOMISTAS

dução capitalista — assinalou-se como uma época de violenta subversão da ordem existente, cuja ocorrência na Inglaterra foi estudada no famoso capítulo XXIV do Livro Primeiro de O Capital. Com especial relevo figuraram nessa subversão: as enclosures (cercamentos) que ex-pulsaram os camponeses de suas terras e as converteram em campos de pastagem de ovelhas, enquanto dos camponeses expropriados e des-possuídos emergiria o moderno proletariado; o confisco das terras da Igreja Católica e sua distribuição entre aristocratas aburguesados e novos burgueses rurais; o crescimento da dívida pública, que transferiu riquezas concentradas pelo Estado às mãos de um punhado de privilegiados; o protecionismo, que garantiu à nascente burguesia industrial a exclusividade de atuação desenfreada no mercado nacional e lhe permitiu arruinar e expropriar os artesãos, então obrigados ao trabalho assalariado; a alta generalizada dos preços no século XVI, em conseqüência do afluxo à Europa dos metais preciosos da América, trazendo consigo a queda relativa dos salários e dos preços dos arrendamentos agrícolas a longo prazo, o que favoreceu a burguesia urbana e rural; e, por fim, porém não menos importante — o colonialismo da época mercantilista, com o comércio ultramarino, a exploração escravista nas Américas e o tráfico de escravos africanos.

O capital emerge para a vida histórica, o que Marx acentuou em várias passagens, como agente revolucionário implacável que destrói as vetustas formações sociais localistas e instaura grandes mercados nacionais unificados e um processo mundial de intercâmbio e produção acompanhado de rápida transformação das técnicas, das formas organizacionais da economia, das instituições e dos costumes etc. Se o nascimento do capital exigiu o emprego da violência em grande escala, tampouco foi ela dispensada na sua trajetória expansionista. O capital realizou o veloz desenvolvimento das forças produtivas desinibido de considerações moralistas humanitárias, movido por uma avidez acu-mulativa sem paralelo nas etapas históricas precedentes.

O modo de produção capitalista se afirma à medida que dispensa os processos da acumulação originária e difunde processos específicos de exploração e valorização, que conduzem à produção da mais-valia.

A tese segundo a qual o capital contém dois componentes distintos

— o constante e o variável — constitui uma das proposições fundamentais da Economia Política marxista. Insuspeito como crítico e adversário, Schumpeter reconheceu a superioridade desta proposição em face da de Ricardo.