Por felicidade, segundo a autora, o marxismo se salva para a ciência econômica, uma vez que nenhum ponto substancial da argumentação de Marx dependeria da teoria do valor-trabalho. Para Morishima e Catephores, por último, o valor não passaria de um tipo ideal, instrumento heurístico adequado à clarifi-cação do funcionamento da economia capitalista.

A polêmica sobre o problema da transformação tomou rumo peculiar a partir de um artigo publicado em 1907, de autoria de Ladislaus von Bortkiewicz, economista germano-polonês de formação ricardiana.

Considerando incoerente que Marx começasse com valores para chegar aos preços de produção, argumentou ele que, já no começo, os valores precisavam ser calculados como preços de produção. Em outros termos, era ilógico fazer entrar o insumo como valor e obter o produto, na saída, como preço de produção. O sistema de equações montado por Von Bortkiewicz cumpriu várias exigências, porém deixou irresolvida a exigência de uma das igualdades que a transformação implica, já que o total dos preços de produção iniciais ficou situado abaixo do total de preços de produção finais, isto é, após a transformação da mais-valia em lucro.

A abordagem de Von Bortkiewicz só foi retomada e revivida em 1942, na Teoria do Desenvolvimento Capitalista de Sweezy, que precisou, do ponto de vista marxista, alguns aspectos do raciocínio daquele.

A partir dos anos cinqüenta, novas tentativas de solução matemática foram empreendidas por Winternitz, Seton e Morishima. Usando um processo de iterações, o último se aproximou da demonstração do teorema das duas igualdades a partir de preços de produção. Ainda assim, persistiram condições restritivas.

A publicação, em 1960, do famoso trabalho de Sraffa ( Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias) foi recebida favoravelmente nos meios marxistas por trazer uma crítica original e coerente aos fundamentos da corrente marginalista ou neoclássica. Mais do que isso, a obra de Sraffa foi saudada por Meek e Dobb como contribuição decisiva à solução do problema da transformação dos valores em preços de produção. Para eles e vários outros marxistas, a mercadoria-padrão pareceu constituir o elo matemático de que Marx careceu a fim de demonstrar seu teorema das duas igualdades, tendo os preços de produção como pontos de partida e de chegada.

Essa avaliação tão alvissareira da obra de Sraffa não se gene-ralizou, contudo, entre os marxistas. Se, por um lado, era preciso ad-48

MARX

mitir o mérito da crítica aos postulados neoclássicos, tampouco era possível fechar os olhos à oposição entre Marx e Sraffa, uma vez que o último colocara sua demonstração do movimento dos preços sobre a base das quantidades físicas das mercadorias (retornando ao enfoque de Ricardo no seu Essay on Profits, de 1815, com a diferença de que substituía o trigo por uma mercadoria composta). Do ponto de vista teórico, isso equivalia a tomar por um atalho que excluía o valor-trabalho, a mais-valia e a composição orgânica do capital. Que excluía, por conseguinte, o essencial da Economia Política marxiana. Seria possível salvar esta última com base no próprio Sraffa, ou seja, na sua demonstração neo-ricardiana do movimento dos preços e da distribuição do produto social?

Tentou-o Garegnani, porém é forçoso reconhecer que o fez de maneira a retirar com uma das mãos o que concedia com a outra. O

resultado foi a mutilação do sistema de Marx para que pudesse caber no de Sraffa, convertendo este último num verdadeiro leito de Procusto.

Consciente da incompatibilidade, Napoleoni optou por Sraffa e, com um radicalismo coerente, afirmou que, depois dele, o marxismo não podia mais contar com a ciência econômica e se deveria “começar tudo de novo”.

Tais as coordenadas de uma polêmica sobre a qual a literatura internacional já é pletórica, cabendo registrar também a contribuição brasileira.

A nosso ver, a abordagem da transformação do valor em preço de produção, iniciada por Von Bortkiewicz, confundiu um problema falso com um verdadeiro. Semelhante confusão persiste e impede que se alcance clareza acerca da questão.

O problema falso consiste em pretender demonstrar o teorema das duas igualdades a partir de preços de produção. Mesmo que isto seja conseguido sem condições restritivas, o teorema não ficará demonstrado por motivo de carência lógica. Para demonstrá-lo, é preciso partir de valores, como fez Marx. Porque só assim estará provado que, quaisquer que sejam os preços das mercadorias e a não-equivalência nas suas trocas singulares, a sociedade disporá unicamente da soma de valores igual àquela incorporada às mercadorias (nem mais, nem menos), enquanto a classe capitalista não terá senão um lucro total igual à mais-valia total (nem mais nem menos). O enfoque metodológico não pode ser diferente no caso, embora seja lícito substituir, se possível, o procedimento aritmético marxiano por outro algébrico atualizado. O

próprio Marx não foi especialista em matemática, porém Morishima, autoridade no assunto, elogia suas intuições e contribuições no âmbito da Economia matemática. Marx aprovaria certamente a elaboração matemática moderna de suas teses sob a condição, está claro, de que não se autonomizassem os aspectos quantitativos com relação aos qua-49

OS ECONOMISTAS

litativos, o que conduziria, como se deu com a escola neoclássica, a fórmulas vazias de substância histórico-social.